Fascismo é quando a esquerda quiser

Alexandre Franco de Sá
Observador 20160601

As afirmações vazias e triviais de Rodrigues dos Santos apenas deviam fazer sorrir. Que suscitem tamanha fúria mostra apenas que Portugal precisa de uma cultura que forme para a discussão e a crítica.

A chamada “tese” que José Rodrigues dos Santos resolveu apresentar numa entrevista como “polémica”, segundo a qual o fascismo teria origem no marxismo, não é simplesmente incorrecta. Tal afirmação é certamente muito insuficiente para compreender o que quer que seja, é ingénua e simplificadora, inaceitável no modo como foi formulada, mas não está liminarmente errada.
Nas suas intervenções sobre o assunto, depois de promover os seus romances como quem tivesse descoberto um grande segredo, José Rodrigues dos Santos lá argumenta que o fascismo tem origem no movimento socialista italiano após a Primeira Guerra Mundial, que Mussolini tinha sido membro do Partido Socialista e director do jornal Avanti, que ele era – como Lenine – um leitor de Georges Sorel, que o “mito” soreliano da greve geral, capaz de despoletar a violência revolucionária, é transformado pelo fascismo no “mito” da nação. Tudo isto é verdade, mas também é básico. Aliás, a verificação de uma semelhança estrutural entre os modos de pensar de marxismo e fascismo não é nada de novo e levou um pensador como Eric Voegelin, por exemplo, a ousar a tese de que seria possível encontrar em ambos uma forma moderna de gnosticismo. Diante de uma realidade hostil, tratar-se-ia em ambos os casos de assumir o conhecimento e a “verdade” do sentido da história, de anunciar dogmaticamente essa “verdade” recusando a discussão e o pluralismo, de operar a “salvação” no plano secular da imanência histórica e de acelerar o seu desfecho, através da acção de uma vanguarda revolucionária que desencadeasse o advento do “homem novo”.
Talvez ao mencionar a chamada “tese” da origem marxista do fascismo José Rodrigues dos Santos tivesse em mente sobretudo esta convergência estrutural de modos de pensar, a qual está na base, claro está, das semelhanças históricas entre regimes fascistas e comunistas. Refiro-me, bem entendido, ao partido único pensado como senhor da verdade e intérprete da marcha da história, à “reeducação” ou “eliminação” dos opositores e por aí fora. No entanto, tal como o marxismo, o fascismo é um movimento político intelectualmente muito rico, cheio de heterodoxias e irredutível a uma estrutura linear. Quer isto dizer que, no que ao fascismo diz respeito, não são só o marxismo e o socialismo revolucionário que estão na sua origem.
Por exemplo, a concepção do Estado por Hegel como “realidade efectiva da liberdade concreta”, cuja crítica é elaborada por Marx, é reapropriada pelo fascismo (não foi por acaso que um dos maiores filósofos “hegelianos” do Século XX, Giovanni Gentile, foi ministro da Educação de Mussolini). Para o fascismo, longe de ser um instrumento ao serviço da classe burguesa, que a revolução anunciada pelo marxismo deveria ultrapassar através da ditadura do proletariado, o Estado é antes o lugar onde a liberdade deixa de ser meramente abstracta e negativa, isto é, negação pelo indivíduo do todo em que concretamente existe, e adquire realidade concreta no seio desse mesmo todo. Neste sentido, apesar das suas origens e semelhanças com o marxismo, o fascismo é também caracterizável como um “antimarxismo”.
Do mesmo modo, para dar outro exemplo, também a apropriação da concepção da razão por Nietzsche como um recurso vital, e da vida como “vontade de poder”, coloca o fascismo em contraposição à reivindicação marxista da herança do racionalismo e da filosofia das luzes. No entanto, nenhuma destas contraposições desautoriza a verificação de semelhanças entre marxismo e fascismo. Apenas a torna insuficiente como análise destes fenómenos políticos e revela como grosseira, na sua formulação, uma pretensa “tese” que enuncie simplesmente que o marxismo se encontra na origem do fascismo.
Sendo um fenómeno político especificamente italiano, o êxito inicial do fascismo e o seu trágico desfecho deu origem a que este fosse cada vez mais usado como uma designação geral que, nessa medida, se tornou crescentemente imprecisa. Dou apenas um exemplo desta imprecisão, para ilustrar o caso. Já antes da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, autores “marxistas” como Walter Benjamin ou Georg Lukács se referiram ao nacional-socialismo como “fascismo alemão”. Uma tal designação, no entanto, encerrava uma crítica ao nacional-socialismo que hoje, pelo modo como os conceitos são usados, se torna dificilmente compreensível.
Para o principal ideólogo nazi – Alfred Rosenberg, autor de O Mito do Século XX – o Estado a que o fascismo se refere, um Estado assumidamente forte e autoritário, colocado acima da pluralidade social como sua unidade política, era simultaneamente um “ídolo” que o nazismo deveria derrubar e um “instrumento” de que o Partido se deveria servir. Num artigo publicado a 30 de janeiro de 1934 no jornal oficial do Partido Nazi, o Völkischer Beobachter, no dia em que se celebrava o primeiro aniversário da nomeação de Hitler como Chanceler, Rosenberg recusava a designação fascista do Estado Nazi como totaler Staat ou stato totalitario, afirmando que para os nacional-socialistas só o povo e a “visão do mundo” do movimento poderiam ser “totais”.
No seu anti-hegelianismo, Rosenberg desenvolveu, assim, uma visão muito próxima da concepção marxista do Estado como um instrumento nas mãos do Partido e do Movimento. Naturalmente, seria simplesmente idiota partir daqui para afirmar a solidariedade de “visões do mundo” entre nazis e comunistas. Contudo, a semelhança na sua concepção do Estado permitiu que os dois partidos cujas milícias se defrontavam nas ruas de Berlim colaborassem no Parlamento, em 1932, para minar a República de Weimar e criar uma situação de ingovernabilidade que tornou inevitável a chamada de Hitler ao poder. A designação do nacional-socialismo como “fascismo alemão” contribuiu, por exemplo, para tornar invisível esta história.
Entre nós, a imprecisão do termo “fascismo” tornou-se manifesta sobretudo, como se sabe, nas polémicas cíclicas em torno da classificação política do Estado Novo. O autoritarismo salazarista, na sua génese um corporativismo católico e antimoderno onde a influência de Maurras é marcante, é designado como “fascista” precisamente com base nesse carácter cada vez mais genérico e impreciso que o termo assume. Neste contexto, é possível dizer que do mesmo modo que o nacional-socialismo é uma espécie de fascismo, também o são o Estado Novo, o franquismo e demais regimes autoritários.
Usado desta maneira, como um operador de classificação no âmbito da politologia, nada há de errado em tomar o fascismo como um “género comum” capaz de proporcionar a comparação entre regimes com traços semelhantes (apesar de esse método contribuir por vezes – é a outra face da moeda – quer para ignorar diferenças relevantes, quer para gerar discussões ociosas). Contudo, se nada há de errado em usar assim o conceito de “fascismo”, há algo de obsessivo e até doentio em usar e abusar dessa designação como arma política de arremesso. É em larga medida o que fez e ainda faz grande parte da esquerda portuguesa, numa atitude em que a amálgama de termos como “direita”, “liberalismo”, “neoliberalismo”, “autoritarismo”, “fascismo”, “conservadorismo” ou “capitalismo” estabelece um cânone politicamente correcto tão estreito e limitador quanto confuso. Pelo meio, esta espécie de “mixórdia de temáticas” gera o efeito pretendido: o silenciamento de alguns autores, a demonização de outros, o condicionamento da educação, o empobrecimento da cultura, o cultivo de lugares comuns e a redução do pensamento ao slogan.
É no contexto deste uso e abuso do “fascismo” por alguma da nossa esquerda que o clamor suscitado pelas afirmações de José Rodrigues dos Santos pode ser explicado. Qualquer evocação das relações históricas entre socialistas e fascistas, ou qualquer comparação conceptual entre marxismo e fascismo, ofende imediatamente uma mentalidade dicotómica que vê o mundo político como uma batalha do bem contra o mal; uma mentalidade que, neste esquema simples, não permite que se toque nas “sagradas escrituras” do marxismo, incensadas como “progressistas”, “emancipatórias”, “defensoras da justiça e direitos humanos” e outros epítetos anacrónicos.
Numa situação normal, as afirmações vazias e triviais de José Rodrigues dos Santos – uma espécie de Dan Brown português – na promoção dos seus romances apenas fariam sorrir. Que elas suscitem tamanha fúria e discussão demonstra apenas que Portugal precisa de uma escola em que se forme para o conhecimento, para a cultura, para a verdadeira discussão e para a crítica; não uma escola que promova as ideias feitas ou as “gargalhadas” que há poucos meses faziam as preferências de certa dirigente partidária.
Professor da Universidade de Coimbra

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