Não há um muro
João César das Neves
DN 20160630
O dramático resultado do referendo britânico da semana passada deu, como se esperava, origem a enorme chorrilho de disparates.
Para lá dos profissionais da asneira, extremistas de todas as cores a quem tempos turbulentos dão audiência, muita gente sensata decidiu entrar na enxurrada, contribuindo com cenários radicais e abstrusos.
Há razões válidas para o vendaval, pois todos estamos justamente confusos e assustados. Não apenas a possibilidade de saída do Reino Unido da União representa um choque terrível num momento difícil da Europa como também a diferença mínima da votação manifesta um país profundamente dividido numa questão essencial. Isso antecipa enormes dificuldades, bem como novos tremores, como o já anunciado referendo escocês sobre a permanência na Grã-Bretanha ou dificuldades acrescidas na dividida ilha irlandesa. Pior, o caso mostra um patente defeito no sistema democrático que surpreendentemente quase passou despercebido.
Qualquer que seja a opinião no assunto, parece evidente que uma decisão deste alcance não pode ser tomada assim. Não é razoável que uma consulta ocasional, para mais com estimativas tão próximas, voláteis e mergulhadas em embustes e falácias, decida questões fundamentais e estruturantes como estas. Todos devem ter isto em conta, pois assim até os vencedores de hoje podem ver os seus ganhos invertidos com a mesma facilidade. Isto não passa de uma roleta eleitoral, alheia a um regime saudável e equilibrado.
A coisa fica pior por ter antecedentes. Foram situações destas que geraram o repúdio generalizado pelas democracias na primeira metade do século passado. Nunca se pode esquecer que o actual consenso a favor do regime livre se deve apenas ao flagrante desastre dos sistemas totalitários em meados de Novecentos. Mas estes gozavam inicialmente de vasto apoio, precisamente devido ao desastre das democracias nas décadas anteriores. Continuando por este caminho, repetiremos esses erros.
Quem ignora que os extremistas sabem usar a liberdade e as instituições para as destruir? E quem duvida de que isso pode acontecer hoje no Ocidente como há 90 anos? Este referendo inglês, tal como o escocês em 2014 e os outros que muitos sugeriram nesta semana, caem evidentemente neste caso. Claro que a vontade do povo deve ser sempre respeitada, mas qual é a vontade do povo? Se o voto tivesse acontecido umas semanas antes ou depois, toda a história desse povo seria fundamentalmente diferente. E se a consulta for repetida daqui a meses, o efeito pode ser o oposto. Isso mostra como o método é errado nestas decisões. Nas democracias, sérias mudanças constitucionais só são admissíveis com maiorias alargadas. Não é a permanência na União mais decisiva e influente do que muitos parágrafos constitucionais? Como pode estar sujeita à diferença de milhares de votos?
Para lá deste grave erro institucional, pior por se situar na sociedade britânica, pilar da liberdade contemporânea, outro facto determinante deste processo foi a displicência com que tantos falaram e falam da situação, fazendo o jogo dos radicais. Parece que a saída da Grã-Bretanha e o alegado fim da União Europeia, invocado tão profusa e imprudentemente nestes dias, são assuntos abstractos e alheios, interessando apenas a estratégias políticas e a xadrez internacional na congénita tolice governamental.
Fingem esquecer que o povo britânico está condenado a forte recessão, que se pode transformar numa perda mais longa e profunda, dependendo de negociações ainda imponderáveis. Muitos dos que celebraram na sexta-feira vão em breve amargar esses festejos. Se isso é já um facto, os cenários afirmados com tanta ligeireza serão muito piores. A desunião europeia, invocada de forma tão frequente quanto fútil, ou mesmo só uma crise, traduzir-se-á em desemprego, pobreza, injustiça, tumultos e confrontos por toda a Europa.
Perante isto, a posição razoável é a tomada pelos políticos, por uma vez mais sensatos do que os comentadores: o resultado de quinta-feira é profundamente perturbador e lamentável, exigindo esforço geral para minorar efeitos e evitar repercussões e contágios. É difícil de aceitar que tantos analistas honestos e responsáveis se deixassem contagiar pelo nervosismo extremista, elaborando sobre a questão como meramente potencial e abstrata. Mesmo que se sintam pessoalmente imunes, pensem nos familiares. Senão por sensatez, ao menos por pudor, era bom contenção e equilíbrio. Não estão sentados num muro a contemplar os tontos em baixo. Estamos todos solidários pois somos europeus.
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