Asfixia democrática

Alexandre Homem Cristo
Observador 20/6/2016

Costa pode afirmar o mesmo que Passos. E Gabriela Canavilhas pode sugerir o despedimento de uma jornalista. Sem gerar alarido. A geringonça diz o que quer porque é ela quem define o que se pode dizer.
Em 2011, Passos Coelho indicou o mercado da língua portuguesa como uma alternativa profissional para professores. Agora, em 2016, António Costa faz igual apelo. As reacções diferem. A declaração de Passos Coelho soou com estrondo, amontoando opiniões muito críticas ao que, à época, foi recebido como um apelo anti-patriótico à emigração – por jornalistas, por políticos, pela opinião pública. Por seu lado, a afirmação de António Costa passou despercebida, lida enquanto discurso de circunstância, sem relevância ou gravidade. Há quem argumente que o sentido destas duas declarações não é o mesmo – nos partidos, existe sempre gente disponível para esses serviços medíocres. Mas esgrimir nesse sentido não exterioriza apenas falta de seriedade, ajuda a encapotar dois problemas que se têm ampliado no debate público em Portugal: primeiro, o predomínio da demagogia e da chicana na discussão dos temas políticos, que impede a reflexão sobre os rumos do país; segundo, a hegemonia da esquerda, que lhe permite fixar as regras do debate político.
Passos Coelho e António Costa têm razão: as escolas terão menos alunos e, por definição, menor necessidade de contratação de professores, pelo que o estrangeiro deveria ser uma opção a ter em conta para esses profissionais. Mas, seja qual for o tema – Caixa Geral de Depósitos, crise do sector bancário, metas orçamentais, reforma da Segurança Social –, o ar do debate público está tão viciado que inviabiliza discutir o país sem encalhar na chicana e na demagogia mais pífia. Começa na Assembleia da República, onde os debates parlamentares se nivelam tão por baixo que, se a ARTV tivesse audiência, o país estremeceria em choque. Continua nos jornais onde, por falta de recursos, cada vez mais se reproduz acriticamente o que agentes políticos (deputados, ministros, associações e sindicatos) disparam para o ar. Prossegue nas televisões que, reféns de relacionamentos políticos, abusam da figura do político-comentador, impingindo ao país debates cacofónicos que prolongam a mediocridade parlamentar. E termina, inevitavelmente, num debate pobre, pouco esclarecedor e incapaz de, no espaço público, potenciar a discussão do que quer que seja para além das vistas curtas de interesses imediatos – sejam estes partidários ou corporativos.
É mau? Sim, mas há pior. Para além de pobre, o debate político está conduzido em sentido único – para a esquerda. Seja a esquerda do protesto (PCP-BE), cujas relações com sindicatos permite mobilizar as ruas e garantir uma forte presença no debate público na defesa das suas propostas. Seja a esquerda autoproclamada autora do regime (PS), que se refugia no estatuto de algumas das suas figuras para definir as regras do debate político – e, por vezes, também as próprias regras do regime, sempre em função dos seus interesses. Ora hoje, com a “geringonça”, a questão adensa-se: a coligação que rege o país concilia as duas esquerdas e, através delas, alcançou um poder que nunca nenhum outro governo teve – o de controlar as várias dimensões mediáticas do debate político e, assim, circunscrever a oposição à irrelevância do teatro parlamentar.
Não é por acaso que Costa pode afirmar o mesmo que Passos sem criar alarido. Ou que Gabriela Canavilhas, deputada do PS, pode sugerir o despedimento de uma jornalista e, sem gerar gritaria, o episódio não passar de um breve fait divers – num país civilizado, constituiria uma óbvia pressão política sobre a liberdade de imprensa. Ou, ainda, que Centeno pode agora vender Portugal lá fora como um país de mão-de-obra barata quando, há pouco mais de um ano, toda a esquerda qualificava de “fascistas” iguais declarações de governantes de PSD e CDS. Tudo isto aconteceu na última semana. O PS, ao lado da geringonça, faz e diz o que quer porque é no interior dessa “geringonça” que se define o que se pode fazer e dizer – o que é polémico, o que é legítimo e o que merece protestos populares organizados pela CGTP. Por outras palavras, é a esquerda que governa quem detém o monopólio dos instrumentos mediáticos de oposição política. Enganam-se, pois, os que acreditarem que tudo isto é inócuo. Quando quis controlar a TVI, era um poder deste tipo que Sócrates ambicionava. Nunca estivemos tão próximos da asfixia democrática.

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