O sucesso do impossível

João César das Neves
DN 20160623

O referendo de hoje na Grã-Bretanha, qualquer que seja o resultado, manifesta o estrondoso sucesso do projecto comunitário. Para o compreender é preciso abandonar o simplismo das teorias habituais e considerar alguns elementos básicos da realidade.
A União Europeia é politicamente impossível. Que um conjunto de países independentes, após séculos de contínuos e sangrentos embates, decidam partilhar soberania e agir concertadamente em quase todos os temas do espectro político, desafia qualquer plausibilidade. Nunca se viu nada de semelhante. Parece um sonho ingénuo de idealistas visionários, não uma entidade histórica e diplomática. O projecto só alcançou verosimilhança nas terríveis condições do maior cataclismo da humanidade, a II Guerra Mundial, em que o inconcebível se concretizou a muitos níveis. Mas nunca poderia resistir nas condições normais da sociedade.
Esta impossibilidade é não só realidade mas também tem uma relevância histórica firme e incontornável. Prova evidente deste sucesso é a generalidade de os vizinhos querer entrar, e de facto ter entrado, e os longínquos fingirem copiar. Existem múltiplas experiências de integração económica espalhadas pelo globo, embora nenhuma com a profundidade e influência da Europa. Que a União constitui um triunfo notável é gritante em cada dia que passa. Há muito que ela tem um lugar ímpar nos anais das relações internacionais, registando solidez e dinâmica invejáveis num mundo turbulento. Mesmo se acabasse já e ingloriamente, seria certamente invocada e recuperada durante milénios.
Só entendendo este facto é possível avaliar os vários percalços do quotidiano, como este referendo britânico. Sendo logicamente impossível, o dia-a-dia da União só pode ser intricadíssimo, com frequentes e graves desastres. É evidente que a Europa tem de ter inúmeros problemas e estar longe de ser perfeita. Pode até dizer-se que, desde o início, a CEE viveu sempre à beira do colapso, com contínuas crises quase-fatais. Todas as amargas críticas que lhe fazem estão sempre carregadas de razão, mas todas passam ao lado do essencial. Os eurocépticos fazem como alguém milagrosamente salvo de uma doença terminal, mas protestando pela dieta e proibição de noitadas.
A esta luz, não surpreende que o referendo acerca da hipótese de o Reino Unido abandonar a União demonstre não a fragilidade mas também a robustez do projecto europeu. Primeiro pela raridade destas iniciativas. Esta é apenas a segunda vez que a Grã-Bretanha referenda a sua permanência na Europa integrada, tendo a 5 de Junho de 1975 decidido ficar por mais de 67%. E estes dois casos são a excepção, não a regra nos 28 membros. Será que a 18 de Abril de 1951, quando foi assinado o Tratado de Paris que criou a CECA, alguém imaginaria tal vastidão, duração e consenso?
Em segundo lugar é notável que neste intenso debate ninguém, em qualquer das partes, esteja a dizer que o Reino Unido ganhará económica ou politicamente com a saída da União. Os argumentos para a mudança são sobretudo ideológicos e nacionalistas, prometendo perdas socioeconómicas reduzidas e negando a catástrofe que prenunciam os adeptos da permanência. É de tal forma evidente que, se sair, o país sofrerá forte queda no poder económico-financeiro e influência internacional, continuando de fora a ser fortemente influenciado pela unidade dos vizinhos, que até os mais fanáticos admitem esses prejuízos, alegadamente compensados pela autonomia recuperada.
Finalmente, o brexit constitui uma ameaça assustadora também para toda a Europa, e até fora dela. Isso, por si só, chega para mostrar o êxito. Se a União fosse um fiasco, não só haveria referendos destes em todo o lado, não só se anunciariam ganhos substanciais pelo abandono como ninguém lamentaria a saída dos outros. O medo que se sente prova bem as enormes vantagens da integração europeia.
Desde o início que o ideal da cooperação comunitária tem sido repetidamente atingido e desviado por egoísmos nacionais, oportunismos partidários e ideologias abstrusas. Isso é normal. O que é estranho, sumamente estranho, é a sobrevivência deste inacreditável projecto, que inesperadamente resiste e se alarga há 65 anos. Nesta conjuntura, de novo, os analistas políticos antecipam o fim da União abanando severamente a cabeça. É preciso dizer que eles têm imensa razão, como a têm tido há décadas, apesar de sempre falharem redondamente na previsão. Como voltará a acontecer depois deste circo mediático do brexit, que tantos alimentaram tão irresponsavelmente.

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