"Lá em casa ninguém se zanga com a política. A cozinha não é má"
DN20160618
Entrevista ao advogado, que esteve detido no Aljube, onde conheceu Mário Soares, e foi ministro do Ultramar no início dos anos 1960. A pretexto do novo livro de crónicas do DN, recordou o seu percurso político, cívico e académico
No seu gabinete de todas as manhãs, na Academia das Ciências de Lisboa, Adriano Moreira recebeu o DN, numa conversa que se prolongou a dois tempos, para desfiar histórias e nomes, numa memória que raramente se atrapalhou. O professor universitário jubilado tem um livro novo que reúne as crónicas do DN e outro na calha. Da janela do gabinete vê-se o Passos Manuel, onde fez o liceu e para onde ia a pé desde Campolide. Foi por onde começou a entrevista...
Veio "criança de colo para a cidade grande", mas ao mesmo tempo sentia-se um transmontano a viver em Campolide. Esses dois mundos completavam-se, ou havia grandes diferenças?
Nesse tempo, Campolide era uma espécie de aldeia anexa a Lisboa, eu por exemplo andei neste liceu e eu vinha a pé de Campolide até aqui e aponta pela janela.
Com um grupo de colegas.
Sim, eram dois. Depois voltávamos ao fim das aulas, eram quilómetros de caminho. Era um meio que também tinha alguma coisa de aldeia. Acontece que os transmontanos eram, e são, muito solidários. Todos os amigos do meu pai e da minha mãe eram transmontanos que estavam em Lisboa, e eu sempre fui passar as férias grandes com o meu avô para a aldeia. Eram três meses, três meses de liberdade, isso fez de mim muito mais transmontano do que lisboeta - não só a gente com quem nos dávamos. Aqui tem como é que eu fiquei transmontano. Uma coisa curiosa: quando tive de ter funções públicas, a qualquer um dos sítios onde eu chegava havia logo transmontanos, vinham logo ter comigo.
Ainda vai a Grijó de Vale do Infante, a aldeia onde nasceu?
Vou. Sabe o que significa Grijó? Quer dizer igrejinha, por isso há vários em Portugal. Eu vou lá de vez em quando por várias razões - primeiro porque estão lá enterrados o meu pai e a minha mãe. Eu tenho sempre um afeto permanente pelos meus pais. Um pai que é filho de um empregado de um moinho, vem para Lisboa e faz serviço militar e, como era costume da migração lá de cima, eles tinham oportunidade na polícia, na Guarda Republicana e nos elétricos. O meu pai acabou a vida como subchefe da polícia do Porto de Lisboa. Este homem, com estas dificuldades, resolveu que tinha um filho e uma filha e que os dois tinham de ter um curso superior - imagina o sacrifício? A minha irmã é médica e eu sou esta pessoa, licenciado em Direito e sou doutor em não sei quantas coisas.
Falava da ligação com o seu pai.
Tenho sempre uma fotografia do meu pai comigo puxa da carteira para a mostrar e no meu escritório. Em casa também, na sala de estar, um retrato que um amigo meu, que é pintor, pintou e fez-me uma surpresa.
A sua mãe?
A minha mãe também era da aldeia, ficava em casa mas fazia trabalhos de costureira. Aquela gente era especial porque o pai da minha mãe já era assim uma pessoa que tinha estado no Brasil, dois anos (teve uma zaragata com a administração pública em Macedo de Cavaleiros e depois teve de emigrar). Depois voltou para a aldeia. Era um homem muito lido, recebia jornais, como O Século, que lia todos os dias num banco de pedra.
É esse avô de quem diz que só por o ter conhecido valeu a pena já ter vivido?
É. Era um homem extraordinário, sensato, muito lúcido e muito inteligente, aliás, a minha mãe ficou com a inteligência dele. A vida na aldeia era terrível, ele teve oito filhos e enterrou cinco com tuberculose, mas nunca o ouvi queixar-se. Era rijo, com carácter, nada de se queixar. É uma coisa simples. Eu tive uma vida muito simples, fiz o curso secundário a ir a pé, depois fiz o curso universitário a ir a pé para o Campo de Santana e a voltar para Campolide sempre.
O seu mundo, na juventude, é também o mundo da Segunda Guerra Mundial. Aquilo que chegava da Europa até cá ajuda-o a moldar-se politicamente?
Eu devo dizer que, na altura, a política não me interessava.
Mas junta-se em 1945 a uma lista do MUD (Movimento de Unidade Democrática, de oposição).
Não. Isso foi porque no escritório onde estava a fazer o estágio toda a gente assinou essa lista - e eu também. Eram eleições livres e eram o que pediam. Eu formei-me com 21 anos e estava naquele escritório e toda a gente assinou.
Não é a Segunda Guerra Mundial que o muda politicamente?
Eu entrei na Faculdade de Direito com 16 anos. A grande inquietação que nós tínhamos eram as notícias sobre o avanço das tropas alemãs que já estavam nos Pirenéus, e a invasão da península era uma coisa possível. O sentimento da população em geral era contra os alemães. Não é que o povo soubesse o que era o nacional-socialismo, mas o homem estava a destruir a Europa, isso era bastante para ter medo e até a nível moral ser contra. Como eu tive toda a minha juventude com necessidade e esforço físico, a política não me interessava realmente. Só muito tardiamente é que comecei a interessar-me, sobretudo quando enveredei pela vida universitária. Houve duas coisas - a que eu chamo as minhas quedas no mundo - que me levaram a interessar a sério pelas coisas: fui convidado para ser professor da Escola Superior Colonial. E o ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues pediu-me para estudar o problema prisional do Ultramar. Fui a todas as colónias de África e escrevi um livro, que foi a minha tese de concurso, sobre O Problema Prisional do Ultramar. Ganhou um prémio da Academia das Ciências, que nesse tempo era nem mais nem menos do que 80 contos, e dei-o todo à minha mãe para reconstruir a capela da aldeia.
A pedido da sua mãe?
Não, ela não pediu, não foi preciso, eu sabia da capela, foi um gosto muito grande para mim, a minha mãe era muito crente e vi que era uma coisa que poderia fazer, de maneira que, com esse prémio, paguei.
Voltando à tese...
Eu fiz isso e inspirou a "reforma Sarmento Rodrigues" no regime prisional. Ainda hoje acho que a reforma foi boa. A minha inspiração principal veio de um médico que havia no Congo, que era um homem que além de médico era teólogo e músico e resolveu adaptar o hospital à cultura nativa. O que interessava eram as populações nativas, eu disse que só podia haver campos de trabalho para que tivessem uma atividade em que fizessem a sua agricultura e com bom comportamento podia significar juntar a família. Comecei a interessar-me por aquilo e digo que foi a minha primeira queda do mundo porque conhecia o Direito, era o que eu ensinava, mas vi que não era o Direito que estava em vigor. Depois vem o problema de Portugal entrar nas Nações Unidas: o chefe da delegação foi o Dr. Paulo Cunha, que era um grande professor, tocava violino, era alegre, e foi-me buscar à Escola Superior Colonial. Fui com ele, era gente muito nova e todos de grande categoria, como Franco Nogueira, ainda jovem conselheiro.
Estamos em 1957.
Por aí. É a minha segunda queda no mundo. Eu sabia muito bem o que era a Carta das Nações Unidas e a Declaração de Direitos Humanos, tudo do Direito, mais uma vez, feitas por ocidentais, mas foi a primeira vez na história da humanidade que ouvimos representantes de áreas culturais diferentes, que tinham sido colonizados, a falar ao mundo em função dos seus valores. O Raul Ventura, que era o ministro que se seguiu a Sarmento, organizou um centro de estudos do Ultramar e eu é que fiquei diretor. Fizemos uma data de missões de investigação e é aí que eu começo a defender as teses de que o estatuto do indigenato tem de acabar.
Teses que vai aplicar quando chega a ministro do Ultramar.
Apliquei tudo. Eu mandava um relatório meu para o Ministério do Ultramar e vim a verificar que eles o liam porque dois anos depois o Dr. Salazar manda-me chamar para falar comigo. Quando lá cheguei o Dr. Salazar disse-me: "O senhor escreveu um relatório para o Ministério do Ultramar e disse que em 1961, mais ou menos, haveria revolta, como é que adivinhou isso?" E eu respondi: "Porque tive uma professora na primária que me ensinou a fazer contas", "então como é isso?", "é simples, Portugal não seria condenado enquanto tivesse um terço dos votos das Nações Unidas e eu fiz as contas à entrada dos países e verifiquei que se perdia o terço nessa data, éramos condenados, eles tinham o apoio internacional de todos os lados e a previsão era essa", e então ele disse-me: "O senhor tem razão para dizer que não ao que eu lhe vou perguntar, mas quer vir pôr essas reformas em vigor?", e eu disse "não posso responder assim porque não pertenço a nenhuma política nem sequer fui da Mocidade Portuguesa e, para me meter numa coisa dessas, quem é que me apoia?", e diz ele "apoio eu", e eu disse "não chega, preciso de gente técnica". Depois ele ainda disse: "Eu sei que o senhor tem razões para me dizer que não por causa da questão do Santos Costa", e eu disse-lhe "senhor presidente, desculpe, mas não é o único português que põe os interesses do país acima das suas discordâncias". E aqui tem como é que eu entrei.
Esse episódio é de 1948, quando defende a família de um general num processo de homicídio voluntário, que faz um pedido de habeas corpus, o primeiro de todos, e acaba preso no Aljube.
Essa história nunca a abordo muito porque já morreram as pessoas, mas sim, fui preso. António Ribeiro, que era advogado da Standard Elétrica - que foi onde eu comecei a trabalhar -, ele é que me encarregou de tratar desse assunto. Um dia chamaram-me à PIDE, o inspetor conhecia-me de miúdo porque o meu pai era subchefe da polícia, quando eu entrei, disse: "Tu é que meteste aquela velhota num sarilho?" e eu disse "qual velhota?", "a viúva do general Mouzinho", e eu disse "não a conheço", "mas ela fez a queixa em nome dela e disse que falou contigo", "não", "então quem é que falou contigo?", e eu disse "isso é segredo profissional, não posso dizer". Ele foi ao telefone e depois voltou e disse: "Olhe, eu falei com o ministro da Justiça, que foi teu professor, não foi?", e eu disse "foi", "ele disse que não podia esperar outra resposta tua mas que te prendesse", "tudo bem, cumpra as ordens".
Esteve ainda dois meses detido?
Quase. Salazar mandou pedir o processo que metia o Santos Costa e arquivou o processo e disse "ponha o rapaz em liberdade, que é o único que se portou com dignidade". Quem interveio logo a seguir foi a Ordem dos Advogados, naquele tempo ser advogado era uma coisa a sério. O ambiente da advocacia era muito diferente de hoje, eu conheci advogados espantosos nesse tempo, ainda fiz tribunal, defesas, e não correram mal. O poder da palavra pode vencer a palavra do poder, era o conceito desse tempo.
Foi um mês e meio complicado para si?
Não, os que estavam presos eram todos comunistas, de maneira que eu era uma pessoa à parte.
Conheceu Mário Soares no Aljube?
Sim, e ficávamos amigos. Ainda hoje no dia da entrevista vou jantar a casa dele. Ele é um ano mais novo do que eu, eu tinha lá ao meu lado, na minha camarata, a História da Filosofia do Hegel e tinha O Príncipe de Maquiavel, que é um livro muito célebre. Ele chega ao pé de mim, diz que se chama Mário Soares e diz "você lê uma literatura toda reacionária" e eu: "Estou a fazer estudos para miguelista" - e ficámos amigos até hoje.
Esteve preso por quase suspeitas?
Sim, "quase suspeitas", e por isso é que Salazar me disse "o senhor tem razões para me dizer que não", que é quando lhe digo "o senhor não é o único português que mete os interesse do país acima das discordâncias".
Acabar com o indigenato significava exatamente o quê?
A relação dos colonizadores, quando começa no século XVI, é de senhores para escravos. Quem acaba primeiro com a escravatura nesta metrópole chama-se Marquês de Pombal, depois no Ultramar é o Sá da Bandeira, mas logo a seguir veio o estatuto do indígena, que era a negação da cidadania, que permitia abusos do ponto de vista selváticos. Além de revogar o indigenato, fiz um código de trabalho rural que foi considerado o mais avançado de África. Depois, é claro, instalei o ensino superior e foi uma luta. Fiz o que pude naquele período todo, mas para isto foi uma fadiga muito grande.
Oliveira Salazar pede-lhe então para mudar de política.
Em determinado momento. Isto, como calcula, atingiu interesses brutais, mudou-se uma estrutura. Eu tenho um filho que é advogado, o João, que esteve em Moçambique, e tinha um colega africano que um dia lhe perguntou se era filho do Adriano Moreira, e ele disse que sim, e ele disse "então vou dizer-te uma coisa: o meu pai africano disse que só teve o primeiro dia de felicidade na vida, já tinha 70 anos, quando lhe deram o bilhete de identidade por causa do decreto do teu pai", portanto veja o que representava para eles. O próprio Salazar começou a sentir reações das bases de apoio dele. Ele chamou-me e disse-me: "Quando o chamei disse-lhe que apoiava as suas reformas, tenho cumprido ou não?", e eu não fazia ideia para que era a conversa, disse "sim, até agora tem cumprido". E disse ainda: "Mas devo dizer-lhe o seguinte, as reações são de tal ordem que eu próprio não estou seguro de poder continuar chefe do governo, temos de mudar de política", e eu com convicção disse assim: "Vossa excelência acaba de mudar de ministro", e ele disse "eu já estava à espera que me respondesse isso", e vim-me embora. Foi sempre atenciosíssimo comigo e, daí por diante, nunca mais tive qualquer atividade política, como não tinha tido antes. Até que veio a Revolução e fui saneado como toda agente.
Nem essas divergências manifestadas com as estruturas do regime o livraram de saneamentos, na empresa e na universidade.
Na universidade até devo dizer que foi onde tive as reações mais inesperadas, mas eu não estava cá, estava no Brasil em serviço. Quem me disse que não voltasse foi o almirante Pinheiro de Azevedo, que tinha sido meu aluno, e eu disse "então mas como não volto se tenho aí a minha mulher e três filhos?", e ele disse "eu trato disso, eles vão ter consigo". Mas não tratava era da minha vida - passei dois meses difíceis. Conhecia muita gente no Brasil, mas nunca fui de andar a pedir coisas. Um dia veio um professor da Católica, que me encontrou, foi a minha casa, estava numa casa bastante humilde, enfim não chovia lá dentro, e disse-me "ando há dois meses à sua procura para o convidar para catedrático da Universidade Católica do Rio de Janeiro". Quem me mandou reintegrar foi o Eanes, com efeito retroativo, no Instituto Superior Naval de Guerra e na Universidade. Ainda hoje tenho gratidão e respeito pelo general Eanes.
Esse tempo viveu-o com ressentimento no Brasil?
Não, eu não sou de ressentimentos.
No fundo, aquilo que lhe estava a acontecer era explicado pelo contexto da história?
Sim. Depois voltei, fui professor da Marinha, ainda outro dia me fizeram uma festa e disseram que eu entrei para a Marinha há 60 anos, todos os chefes do Estado-Maior que estão reformados foram meus alunos, portanto esta coisa do Eanes comoveu-me muito.
Quando regressa, é convidado por Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Narana Coissoró...
Sim, o Narana que tinha sido meu assistente na Universidade.
E é convidado para o CDS?
Sim. Eu achei que esse momento era muito difícil para o país. Antes do 25 de Abril é a tropa que vai avisando que a guerra não se ganha. Segunda coisa: o grande suporte do regime eram as Forças Armadas, e houve avisos de que era preciso mudar. Depois aparece um grupo de Margão, que pede uma constituição federal porque não quer ser invadido pela União Indiana, ninguém aceitou, e houve um movimento para Cabo Verde serem ilhas adjacentes... Eu aí não tinha intervenção nenhuma, mas sei que isso era assim e alguma projeção que eu mantive é porque eles sabiam as coisas que eu tinha escrito. Quando vem o 25 de Abril, a primeira fase chama-se golpe de Estado (que, tecnicamente é quando um elemento da estrutura se afasta), a revolução começa depois. Há então um debate e devemos muito ao general Eanes nesse aspeto - a constitucionalização do regime - que ou se tem uma via revolucionária de extrema-esquerda ou se tem uma constitucionalização europeia, que é o que o general Eanes consegue orientar, e também o Freitas do Amaral e o Jorge Miranda. Eles vão ter comigo e convidam-me pelas coisas anteriores que eu tinha feito e que tinha dito e eu, mais uma vez, aceito pelo interesse nacional. Agora era interessante que, tendo a Europa sido feita pelas democracias cristãs, o país onde a democracia cristã não vingou era o país mais católico - é interessante.
São tempos de trincheira. Ou acha que, apesar de todas as diferenças ideológicas que eram fortes naquela época, eram tempos em que o diálogo era possível?
Na Universidade, foi sempre possível, e se você foi estudante ali no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, encontrou esse espírito, a pessoa fala livremente.
A democracia foi uma aprendizagem para todos?
É evidente que mudar de regime tem de mudar as pessoas, tem de mudar os hábitos. Mas não se teria feito isso se não houvesse homens lúcidos, e o principal, a meu ver, foi o Eanes e o Jorge Miranda e essa gente, que conduziram isto em termos de constitucionalizar o país no modelo europeu. Foi uma grande batalha que eles ganharam.
A ideia de aderir à União Europeia, a CEE de então, por Mário Soares, também ajuda a consolidar a democracia?
Tudo isso. O Partido Socialista teve um papel fundamental nisso: o comício da Fonte Luminosa a 19 de junho de 1975 é um facto histórico fundamental. A linha constitucionalista europeísta ganhou mas foi uma batalha. Devo dizer que gostei de estar no Parlamento durante todo aquele tempo, e acho que a cerimónia da saída não foi má e sorri.
Depois da sua liderança no CDS, num tempo difícil em que o partido estava reduzido a uma dimensão mínima...
Até com uma ação de despejo no Caldas sede do partido.
Depois disso, e depois da sua primeira experiência política ainda no Estado Novo enquanto ministro, refugiou-se na universidade. Esta era um refúgio importante para si?
Não era um refúgio, para mim é uma vocação.
E a política foi uma desilusão?
Não neste sentido. Eu achei que fazia aquilo que em consciência devia ao país. Agora, foi um esforço que não resultou. Mas eu tenho algumas provas, depois disto tudo. Por exemplo, há uma universidade em São Vicente Cabo Verde e eu devo ser o primeiro doutor honoris causa depois da independência. Aqui há tempos ajudei a fazer aquele tratado de Cabo Verde com a União Europeia porque o embaixador que estava cá veio pedir-me, a mim e ao Mário Soares. Fizemos isso, passado algum tempo foi a minha casa a ministra dos Negócios Estrangeiros de São Tomé e disse-me: "Olhe, eu vinha pedir a sua ajuda porque o senhor ajudou a fazer uma coisa para Cabo Verde que nós também precisávamos." Eu disse-lhe: "Ajudo, mas primeiro tem de tomar um compromisso comigo, não mudam o nome da rua que lá têm." Sabe qual é o nome da rua? Rua Ex-Adriano Moreira" risos. Ela, coitada, é que depois mudou, passado pouco tempo deixou de ser ministra.
Esperava ver uma das suas filhas, Isabel, chegar à política? Foi uma coisa que cultivou lá em casa
Não, isso é uma decisão dela. Eu procurei educar os meus filhos com um certo sentido de liberdade e responsabilidade - e a mim também ninguém me encaminhou. Segui muito o meu pai e os exemplos dele. Esta filha tem comigo uns cuidados e um afeto que é uma coisa... Uma vez um jornalista perguntou-lhe "faz estas coisas e então e o seu pai?", "o meu pai é o homem da minha vida" sorriso largo.
Conversam muito sobre política lá em casa?
Então não?! À vontade. Ninguém se zanga com a política. A cozinha não é má risos. Sabe quantos netos tenho? Tenho 14. De vez em quando, quando se juntam todos, é uma festa.
No Dicionário de História de Portugal, Manuel de Lucena diz de si que "releva de fortes tensões interiores, constitutivas de uma personalidade aberta a desencontrados sinais do tempo e habitada por coincidências de contrários". Revê-se nestas palavras?
Nunca tinha pensado nisso. Mas há uma coisa que em mim é constantemente verdadeira. Faço sempre esta síntese, aprendi, sobretudo nas Nações Unidas e depois nos vários sítios por onde passei, sempre que fossem coisas de relações internacionais: nós não temos de ter tolerância pelas diferenças, temos de ter respeito. Não é a mesma coisa, não temos de fazer guerra aos contrários, temos de substituir o combate pelo diálogo, e depois é preciso nunca esquecer que a dignidade é uma condição de todos os seres humanos, independentemente da etnia, da cultura ou da religião. Com estas coisas podemos cumprir dois pressupostos da ONU, que são violados: o mundo é um mundo único e é a casa comum dos homens. É a única coisa que eu sei ou julgo saber.
É o seu legado?
Sim. Por isso eu falo muitas vezes no eixo da roda, porque o eixo da roda são os valores fundamentais. É uma frase que aprendi num romance que li muito novo: "As rodas andam por toda a parte." É isso: os valores são o eixo da roda.
Quando me dizem que não há recursos, eu pergunto"e princípios ainda têm?
Quando diz que é o seu tempo de se dedicar a denunciar os perigos globais, acha que os textos deste livro Futuro como Memória, no fundo, são alertas que deixa às gerações futuras?
O que acontece neste momento, acho eu, é que se comparar o que foi o projeto europeu de União Europeia e o que está a acontecer hoje - a falta de autenticidade evidente - julgo que aquilo que há de mais grave na evolução do poder político é a falta de autenticidade, dizer uma coisa e fazer outra. É evidente que eu nisto ponho um intervalo que diz respeito ao imprevisível, porque o governo pode ser atingido pelo imprevisível, mas não nos princípios, deve responder ao imprevisível com os princípios. É por isso que tenho defendido que mantenham referência ao Estado social, e quando me dizem "mas concorda que não há recursos", eu digo "isso eu já ouvi, mas gostava de ser informado se continuam a haver princípios". A questão é só esta e não é pequena.
Este seu livro, que reúne as crónicas do DN, parece ser um livro sem esperança, no seu preâmbulo parece apontar por aí.
Eu não chamo a isso falta de esperança, tenho esperança de que se volte à autenticidade dos princípios. Julgo que até há uma exagerada ambição de ser poético onde digo que se voltem a acender, pouco a pouco, as velas que faziam que a Europa fosse chamada a "luz do mundo", e essas velas foram-se apagando pouco a pouco. E digo que vamos a voltar a acender as velas para ver se a Europa volta a merecer.
Onde é que acha que a Europa começou a falhar, onde é que as velas se começaram a apagar?
Eu fui muito europeísta. Costumo dizer que nós somos uns injustos e que esquecemos que nós temos um grande europeísta que se chamava Camões, porque ele sabia muito bem que a Europa não tinha unidade de língua, geograficamente é um pouco semelhante a um continente, mas ele dizia que está unida pelos valores que Cristo trouxe à terra, sendo Portugal cabeça de toda a Europa - e qual é o português que se lembra disto? Como vê, o europeísmo não é uma novidade em Portugal. Tenho escrito isso nos artigos do DN. O que me tem impressionado é que assim como as Nações Unidas disseram para todos os países serem iguais, mas havia uns mais iguais do que outros - que estão no Conselho de Segurança -, neste momento os países europeus têm todos a mesma dignidade, mas estamos divididos entre ricos e pobres. Chipre, Grécia, Itália, Espanha, Portugal e França, é o império romano outra vez pobre, e os bárbaros do Norte, ricos. Pelos caminhos por onde eles desceram, para ocupar o império romano, não foi para destruir, neste momento sofrem os nossos povos à procura de emprego e de futuro.
E os pobres a sul da Europa.
Depois, a Europa está rodeada de ameaças que se conjugaram, que eu acho que é uma época tremenda: tem o Mediterrâneo transformado num cemitério, o turbilhão, chamado democrático, dos países muçulmanos, o que mostra como a palavra democracia é generosa (acolhe tantas iniciativas) e ao mesmo tempo a Europa parece que deixou de ter circunstância, aquela velha ideia do Ortega, "cada povo é ele e a sua circunstância". Realmente, é um bocado difícil não ter de falar na circunstância que é a mais grave depois do fim da Guerra Fria. Por isso escrevi que "o imprevisível está à espera de uma oportunidade".
E esse imprevisível coloca o mundo próximo da violência?
O imprevisível está à espera de uma oportunidade, e isto não diz apenas respeito a Portugal e à Europa. Há uma coisa que eu acho que não está suficientemente clara, isto para combater a sua ideia de que é pessimista, porque eu sou otimista - estou é cansado da preguiça. Eu defendo aquela expressão que é a maneira portuguesa de estar no mundo, mas tem um efeito: "Temos tempo."
Nesse tempo cabe a crise dos refugiados e dos migrantes?
Todas estas ameaças sobre a Europa, todas ao mesmo tempo, tem de se assumir que é um momento grave, e digo que o é lembrando muitas vezes, que as grandes guerras começam com incidentes sem importância. A I Guerra Mundial foi porque mataram um príncipe - que é uma coisa que fazemos desde César, de vez em quando mata-se um príncipe -, depois elegeram um sujeito Hitler cuja normalidade era discutível e morreram 50 milhões na II Guerra Mundial. Se quiser fazer uma síntese, acho que Portugal tem janelas de liberdade, uma delas é a CPLP, outra é o Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Com uma circunstância que quero que fique em evidência: o que caiu não foi o império português mas o "império euromundista", porque era a Holanda, era a Bélgica, era a França, era a Inglaterra, éramos nós, caiu tudo, com lutas tremendas...
No livro faz uma crítica constante ao estado da União Europeia.
Sim, a crítica está nesta síntese: a União não tem conselho estratégico. Já viu marchar alguma coisa sem conselhos militares?
Há pouco falava da distinção entre os ricos do Norte e os pobres do Sul. Nos últimos quatro ou cinco anos, notou-se de forma ainda mais acentuada?
Sim. E vou dizer-lhe porquê: também sou partidário do Estado social, e este não é contrário - muito pelo contrário - ao mercado, à iniciativa, respeitando valores. A única coisa que o Estado social reclama são valores, e é por isso que insisto, quando me dizem que não há recursos, que pergunto sempre "e princípios, ainda têm?". A mim interessa-me o mundo e muito Portugal, e sei que Portugal tem elementos para ter um conselho estratégico sólido e com validade. Há uma coisa que não tem, é tempo a perder.
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