O gorila e a criança
Pedro Vaz Patto | Observador 17/6/2016
Declarações recentes do Papa Francisco, críticas em relação a quem dispensa mais atenção e cuidados a animais do que a seres humanos, não deixaram de
ser muito criticadas por associações animalistas.
A morte do gorila Harambe, para evitar o perigo sério de morte de uma criança, suscitou protestos com uma intensidade maior do que a dos protestos que provavelmente suscitaria a morte dessa criança, ou que suscita a morte de muitas pessoas. Houve até quem (Bran Taylor, no Huffington Post) defendesse, a propósito, o valor superior, na perspetiva do equilíbrio entre as várias espécies animais, de um animal de uma espécie rara (como era esse gorila) sobre uma entre milhões de crianças da espécie humana.
Este facto, como a recente discussão parlamentar sobre a alteração do estatuto jurídico dos animais, torna oportuno relembrar mais um dos princípios fundamentais em que tem assentado a nossa civilização e a nossa ordem jurídica e que agora também é posto em causa: o de que o ser humano não se equipara em dignidade aos outros animais (o «excecionalismo humano»). Não é verdade que somos «todos iguais, todos animais».
Esse princípio tem uma das suas raízes (não a única) na visão bíblica da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus (imago dei) e vértice da criação. Mas também na visão corânica do ser humano como “lugar tenente” de Deus na Terra. Uma visão (associada ao que aí se designa como «ideologia judaico-cristã») criticada na exposição de motivos do projeto de lei recentemente apresentado pelo PAN no Parlamento, relativo ao estatuto jurídico dos animais.
Mas essa visão é também a que alicerça a nossa ordem jurídica, que se estrutura a partir do princípio da dignidade da pessoa humana («Portugal é uma república baseada na dignidade da pessoas humana»- afirma lapidarmente o artigo 1,º da nossa Constituição) e no reconhecimento dos direitos humanos fundamentais. Essa dignidade e esses direitos são os da pessoa humana, não os de qualquer espécie animal.
A essa luz, a pessoa humana será sempre sujeito, e nunca objeto, de direitos, fim em si mesmo, e nunca meio ou instrumento ao serviço de outros fins. De outros animais não pode dizer-se isso. A alteração ao Código Civil recentemente aprovada não vem negar que os animais possam ser objeto de direitos (contra o que alguns também já pretendem), embora deixe de lhe atribuir o estatuto de “coisas”, para sublinhar que sobre eles o proprietário não tem direitos absolutos (não pode sobre eles exercer maus tratos). Mas seria possível continuar a considerar os animais “coisas”, porque objeto de direitos, limitando esses direitos (como são limitados, por exemplo, os direitos do proprietário sobre bens que integrem o património cultural e histórico).
Dirão muitos animalistas que pretendem apenas uma extensão do âmbito de proteção dos direitos humanos (os «direitos humanos dos animais» – assim o chamado great ape project, que reivindica os direitos à vida e à liberdade e a proibição de tortura, quanto aos grandes primatas não humanos), mais um passo em frente no progresso da civilização.
Não é assim, porém. Acentuar a continuidade biológica entre as espécies leva a esquecer a sua descontinuidade no plano ético. Pretender elevar os outros animais à dignidade do ser humano acaba por degradar o ser humano, equiparado aos outros animais, com desprezo pelas características que o distinguem e que se situam num plano que transcende o âmbito biológico e material. Como já disse alguém, tratar os animais como humanos leva a tratar os humanos como animais.
Que assim é, revela-o a desconsideração de pessoas humanas menos capacitadas, por doenças ou deficiências, ou porque em fases iniciais da sua existências, antes ou imediatamente após o nascimento, no confronto com animais mais capacitados do que essas pessoas. Porque o recém-nascido tem menos capacidades cognitivas do que um cão ou um porco, Peter Singer justifica o infanticídio. Como já se justifica, em quase todos os países, a desproteção do embrião e do feto (ainda mais desprovidos de capacidades cognitivas) com a legalização do aborto. E, em muitos países, a investigação com embriões humanos está menos limitada do que a investigação com animais.
O que importa, a este respeito, ter bem presente é que a dignidade da pessoa deriva do simples facto de ela ser membro da espécie humana, não de qualquer atributo ou capacidade que possa variar em grau ou que possa ser adquirido ou perder-se nalguma fase da existência. Depende do que ela é, não do que ela faz ou pode fazer. A dignidade da pessoa é sempre a mesma, não varia em grau conforme maiores ou menores capacidades cognitivas, não é maior nas pessoas mais inteligentes ou menor nas menos inteligentes. Não depende da raça, do sexo ou da idade; dela nenhum ser humano está excluído. Não se vai adquirindo progressivamente até à idade adulta, existe na sua plenitude desde o início da vida. Não deixa de existir pela deficiência ou pela doença, físicas ou mentais, por muito profundas que elas sejam. Não se perde com a idade avançada, a demência, ou o estado comatoso. A proteção decorrente do reconhecimento de direitos humanos justifica-se ainda mais, precisamente, quanto aos seres humanos que são mais vulneráveis, por si mesmos ou pela fase da existência por que passam (o embrião, o feto, o recém-nascido, o deficiente profundo, o demente, o doente em fase terminal, o comatoso).
Declarações recentes do Papa Francisco, críticas em relação a quem dispensa mais atenção e cuidados a animais do que a seres humanos, não deixaram de ser vivamente criticadas por associações animalistas.
Na encíclica Laudato Si, o Papa reconhece, porém, o valor dos animais, mesmo para além da utilidade que possam ter para com os humanos, talvez como nunca o tenha feito outro documento doutrinal da Igreja católica. Há que reconhecer o valor próprio de cada criatura, que, cada qual a seu modo, reflete sempre a «uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus» (n. 69), porque «todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós» (n. 84). O Papa denuncia a incoerência de quem pretende proteger outras espécies e não o faz com tanto vigor quando está em causa a espécie humana, incluindo na sua fase embrionária (n. 90, n. 91 e n. 120); mas não contrapõe a proteção do ser humano e a proteção de outras espécies animais: «a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas» (n. 92).
Daí não deriva, porém, o esquecimento da especificidade da posição do ser humano na ordem da criação:
«A Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana, que “não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas”. São João Paulo II recordou que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano “confere-lhe uma dignidade infinita”. Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós: “Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia” (Jr 1, 5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, “cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário”» (n. 65).
A dignidade da pessoa humana decorre, em última análise, deste seu destino: a comunhão com Deus. Por isso diz o salmo 8: «Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste; que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino, de honra e glória o coroaste.»
Mas não é só na mensagem bíblica («grande código da cultura ocidental», na expressão do cardeal Ravasi) e na sua visão do destino humano que pode encontrar-se fundamento para distinguir, em dignidade, o ser humano dos outros animais.
É precisamente porque o ser humano se distingue qualitativamente dos outros animais, que reflete e faz escolhas livres, segundo critérios de bem e mal. E é por isso que tal reflexão e tais escolhas, à luz de critérios éticos, se estendem ao tratamento dos outros animais. O que, obviamente não faz qualquer indivíduo de outra espécie animal, nem o gorila Harambe no seu relacionamento com a criança que poderia ser sua vítima. Quem reivindica “justiça para Harambe” esquece que não podem ser reconhecidos direitos sem o reconhecimento de deveres e que, se o gorila tivesse matado a criança, certamente não seria por isso responsabilizado e sancionado (não seria feita “justiça”).
Em defesa dos pretensos “direitos dos animais”, invoca-se a exigência ética de proteção dos mais fracos, que são, neste caso, espécies não humanas. Também esse é um critério ético que distingue o comportamento humano e que não vigora, como critério ético (ou seja, como opção consciente e livre, diferente do instinto protetor em relação às crias, por exemplo), nos relacionamentos das outras espécies animais (não é essa, certamente, a “lei da selva”). Mas é precisamente esse critério que levou a proteger a criança (de que quase todos ignoram o nome) face ao gorila Harambe (que se tornou famoso postumamente). E esse critério não devia ser ignorado quando estão em causa os mais vulneráveis dos vulneráveis, ou seja, os seres humanos não nascidos.
Em suma, como afirmou, também a propósito deste caso, Mona Charen, «devemos tratar os outros animais com humanidade, não porque eles sejam humanos, mas porque nós somos humanos».
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