O último reduto dos derrotados

Luís Aguiar-Conraria
Observador, 20160629

Muitos dizem que David Cameron errou ao convocar o referendo porque o resultado foi o que foi. É exactamente o contrário. Se a maioria do eleitorado quer sair da UE, então é bom que o Reino Unido saia

Ficámos chocados com a decisão dos ingleses de sair da União Europeia. Pelo menos, eu fiquei. A Europa sem o Reino Unido não é a Europa. Basta lembrar que, mesmo sem Inglaterra, a língua franca na EU continuará a ser o inglês. E quem já tentou aprender alemão deseja vivamente que assim continue a ser.
Independentemente da tristeza de ver os ingleses sair, não deixo de invejar a oportunidade que tiveram de referendar a sua participação. A primeira foi em 1975. Também nessa altura se vivia em crise económica, causada pelo choque petrolífero de 1973, que aconteceu pouco depois da adesão do Reino Unido à CEE (Comunidade Económica Europeia). Também nessa altura deve ter sido fácil atribuir à Europa as culpas de todos os males da crise. Mas o resultado foi diametralmente diferente. Mais de dois terços dos votantes quiseram permanecer na então CEE (Comunidade Económica Europeia).
Já nós, entrámos na CEE sem qualquer referendo. Há uns anos, quando se assinou a Constituição Europeia, também se prometeu um referendo em Portugal, que não se chegou a realizar. Um referendo com resultado negativo em França tinha arrumado com essa Constituição. E quando a Constituição Europeia foi substituída pelo Tratado de Lisboa, também a promessa de referendo foi substituída por um compromisso político para não haver referendo.
A possibilidade de haver referendo a um tratado europeu já se tinha colocado antes, quando se assinou o Tratado de Maastricht, em 1992. Mas não foi para a frente. Lembro-me de, pelo menos, dois argumentos contra a realização do referendo ao Tratado. Um foi do primeiro-ministro de então. Achava que ficava muito caro fazer um referendo. Outro foi do presidente na altura: tinha medo que os portugueses votassem contra e que arranjassem um lindo sarilho.
Muita gente reage ao referendo britânico dando um argumento similar ao de Mário Soares: David Cameron cometeu um erro enorme ao convocar o referendo porque o resultado foi o que foi. É exactamente o contrário. Se a maioria do eleitorado quer sair da UE, então é bom que o Reino Unido saia. Podemos ficar chocados com o facto de a maioria do eleitorado ter escolhido como escolheu. Podemos até achar que são estúpidos, xenófobos, medricas e que decidiram mal. O que faz menos sentido e é pouco democrático é achar que se deve ter uma política contra a maioria da população.
De todos os argumentos, o que mais me irrita é a acusação de que é fácil fazer populismo e mentir aos eleitores nas campanhas que precedem o referendo. Até parece que a Marine Le Pen se tornou a mais popular política francesa por referendo. Ou que Donald Trump foi escolhido por referendo para ser candidato pelo Partido Republicano nos EUA. E até parece que em eleições gerais os candidatos nunca mentem, nunca cedem aos populismos e nunca, mas nunca, prometem aquilo que não podem cumprir. A verdade é bem mais prosaica. Os principais perigos que há com um referendo também existem com eleições gerais.
Os referendos têm, no entanto, uma grande vantagem. Regra geral apenas se vota num assunto específico, em vez de se votar num partido ou candidato com um programa eleitoral com uma gama de assuntos. Por isso é muito mais fácil ao eleitor informar-se sobre o que está em causa. É também muito mais fácil inferir qual a verdadeira opinião do eleitorado. Por exemplo, das últimas eleições no Reino Unido, que elegeram Cameron para primeiro-ministro, seria praticamente impossível inferir as preferências do eleitorado relativamente à UE.
Na verdade, há um imenso trabalho académico que demonstra como o uso do referendo ou de outros instrumentos de democracia directa permitem melhorar a democracia e estimular a vida cívica (o exemplo da Suíça é dos mais citados mas está longe de ser o único). Infelizmente, em Portugal o referendo é usado não como instrumento democrático por excelência, mas sim como pura arma de arremesso político. Uma espécie de último reduto dos derrotados (ou como álibi para alijar responsabilidades). Foi assim no referendo sobre o aborto em 1998 (fez ontem 18 anos), que resultou de um acordo entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres que não tiveram forças para impedir que a Assembleia da República despenalizasse a interrupção voluntário de gravidez. Foi assim com o referendo sobre a Regionalização, que foi o álibi de Guterres para não regionalizar o país. Foi assim quando o deputado do PSD Hugo Soares propôs que se realizasse um referendo à co-adopção por casais do mesmo sexo, pouco depois de a co-adopção ser aprovada na Assembleia, conseguindo com essa táctica adiar por uns meses o inevitável.
E volta a ser assim com o referendo absurdo que Catarina Martins propôs recentemente. Catarina Martins não propõe que se referende o Tratado Orçamental (embora, em tempo devido, e muito bem, o tivesse feito). Catarina Martins propõe um referendo sobre sair da União Europeia caso Portugal sofra sanções por ter violado as regras do défice (que violamos, sucessiva e ininterruptamente, desde 2001). É como se fôssemos perguntar aos criminosos condenados em tribunal se querem rever o Código Penal. Mais absurdo ainda, nos termos em que Catarina Martins põe o assunto, quem votasse a favor da continuação de Portugal na UE estaria a votar a favor das sanções, ou seja, estaríamos a dar carta-branca a Bruxelas para continuar (e até agravar) as sanções.
Dada a atitude dos políticos em Portugal, não admira que a figura do referendo seja tão mal vista. Mas o problema não é o referendo, é mesmo a classe política

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