Titanic
João César das Neves
DN 2016.02.18
O navio da economia portuguesa chocou com um icebergue em 2008. Há anos que eram evidentes os perigos de navegar em águas de endividamento, coalhadas de credores gélidos, mas até ao desastre ninguém no país parecia dar atenção. Aliás, mesmo após o choque, que arrombou o casco em mais de 10%, o capitão andou dois anos a dizer que o problema era controlável. Só em abril de 2011, com o navio já adornado, se assumiu a emergência.
Nessa altura o afundamento estava iminente. Foi preciso ligar a embarcação a um enorme flutuador de 78 mil milhões e instalar bombas potentíssimas para começar a extrair a imensa quantidade de água que invadia as zonas inferiores. Mesmo com essa intervenção desesperada, durante meses permaneceu o risco de a economia ficar encalhada, como acontecia ao navio grego. A emergência exigiu largar muito lastro e alijar carga. Muita gente perdeu a ocupação, pela submersão dos locais onde trabalhava. Milhares de habitantes tiveram de ser deslocados para outros navios, num processo de emigração que não se via há décadas. A nau portuguesa enfrentou a maior crise desde a guerra.
Inicialmente a catástrofe centrou todas as atenções, absorvidas no complexo e perigoso processo de tapar o rombo e bombear a água. Apesar do sofrimento, a crise uniu os esforços nacionais. Tripulantes e passageiros, sob enorme pressão, fizeram o que tinham de fazer: suportaram cortes, perda de bagagem e apertos nas instalações, enfrentaram desemprego, evacuação, ferimentos e os inúmeros encargos necessários à salvação do navio. Naturalmente houve queixas e protestos, mas foram poucos, esparsos e moderados. A unidade nacional, mesmo renitente, foi notável.
Ao fim de três anos foi possível retirar o flutuador, pois o navio, ainda com um rombo de mais de 4%, o dobro do previsto, já se conseguia aguentar sem apoios. Mas os problemas continuavam assustadores, mesmo com as taxas de juro na região geladas pela política do BCE. Não só a brecha exterior permanecia como o embate no icebergue criara outras rachas na estrutura do navio, que o tempo viria a revelar. Dias após a retirada do flutuador, cedeu um dos vaus centrais da embarcação, conhecido como BES, o que reabriu o rasgão no casco e implicou novas fatalidades. Certas partes da carcaça ameaçavam ruptura, forçando até uma intervenção na viga do Banif.
Um outro problema, menos visível, era ainda mais assustador. Devido à necessidade de deslocar passageiros das zonas alagadas, os tanques de combustível começaram a ser usados como camarotes. De facto, para aliviar o peso sem largar carga, muito combustível fora deitado ao mar. Assim a mistura de poupança e investimento que impulsionava a embarcação viu-se reduzida a níveis críticos, o que permitia pouco mais do que navegação de cabotagem.
A fragilidade do navio era tal que a menor tempestade seria fatal. E as nuvens negras acumulavam-se na região... Apesar disso, a retirada do flutuador mudou a atitude e minou a unidade anterior. Cada vez mais dominava a voz daquela elite que inicialmente negara o rombo e depois conseguira, com a sua oposição, evitar várias das medidas de ajustamento. Recusara sempre o alijamento de carga e cortes na tripulação, protestando contra qualquer incómodo dos passageiros e até com o ruído das bombas de água. O trabalho para tapar o rombo era considerado uma mera imposição externa.
Este é o aspecto mais bizarro dessa posição: como nunca atenderam ao buraco no casco, à falta de combustível, rachas na estrutura e perigo de afundamento do navio, os sacrifícios pareciam-lhes meros caprichos, impostos pelas regras da frota e totalmente alheios ao interesse nacional. Por isso ficavam irritados quando se dizia que, devido à brecha e ao peso da água, não existia alternativa à austeridade. Nunca chegavam a explicar qual era, afinal, a sua opção credível e viável de flutuação, mas enfurecia-os a afirmação de que o risco de afogamento não deixava escolhas.
Em 2015 essa elite conseguiu controlar a escolha do novo capitão, prometendo acabar com a crise e retomar a navegação de longo curso. As suas prioridades eram repor feriados, baixar preços nos restaurantes, redecorar camarotes de funcionários e pensionistas e fazer umas obras de beneficiação no convés. Precisamente nessa altura aproximava-se uma terrível tempestade na região, que punha todos os navios de sobreaviso. Mas, tal como em 2008, este capitão assegurava que o problema era controlável. O importante é aumentar o consumo, reduzir os preços dos restaurantes e retomar a festa.
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