A hipocrisia do discurso “neo-nacionalista” da esquerda
PAULO RANGEL Público 16/02/2016 - 00:05
António Costa, que se arvora no campeão do europeísmo, veio colar-se por inteiro ao programa “neo-nacionalista” dos sustentáculos do seu governo.
- Desde que se iniciou a turbulenta saga orçamental do Governo Costa que o PCP se notabilizou por um discurso fortemente anti-europeu, alicerçado na ideia de “ingerência inadmissível” da Comissão Europeia e do Eurogrupo na nossa “soberania” orçamental. Uma retórica totalmente consonante com a linha histórica do PCP, desde sempre feroz adversária da integração europeia. Todos os que discordem da actual política orçamental e que defendam maior prudência e cautela na reposição de rendimentos serão “lacaios” de Bruxelas e perigosos colaboracionistas. Atrelado a este discurso, apareceu também o Bloco de Esquerda, que, com o seu populismo militante, abandonou o anterior “internacionalismo fraterno e libertário” e exibe agora uma atitude essencialmente “proteccionista” e “nacionalista”. Tudo o que venha de Bruxelas não passa de um diktat contra o povo e a suposta vontade popular, uma “intentona” antidemocrática. A esquerda radical aderiu, portanto, ao postulado “chavista” ou “lepenista” do inimigo externo. Os extremos tocam-se. Tudo o que venha da esquerda é favorável ao interesse nacional; tudo o que se lhe oponha é capitulação perante as forças inimigas de Bruxelas.
- No último debate quinzenal, António Costa, que se arvora no campeão do europeísmo, veio colar-se por inteiro a este programa “neo-nacionalista” dos sustentáculos do seu governo. Ensaiou um lamentável discurso populista que desmerece em absoluto a sua reconhecida inteligência e a sua sempre tão celebrada capacidade argumentativa e negocial. Numa bravata “neo-nacionalista”, procurou fazer passar a ideia de que as sérias reservas e desconfianças que o orçamento enfrenta na Europa são resultado de uma malvada e mefistofélica, mas surpreendentemente eficaz, pressão do PSD e do CDS. Nada terão que ver, pasme-se!, com os méritos e deméritos da proposta orçamental apresentada. São, antes e isso sim, o produto de manobras e conspirações de dirigentes do PSD e CDS que, nos bastidores de Bruxelas, mexeram os cordelinhos que podiam tramar o orçamento.
- Esta retórica, ufanosamente agarrada por Costa, releva de uma profunda hipocrisia. Costa sabe melhor do que ninguém, porque tem acesso directo às fontes, que o seu orçamento é frágil e fruste e compromete os objectivos europeus. Mas, no desespero de quem, por força da avaliação das entidades europeias e internacionais e do julgamento dos mercados, vê que os seus adversários tinham razão, ensaia mais uma manhosa fuga para a frente. A posição de Costa revela, antes de tudo o resto, um profundo desprezo pela qualidade política e técnica da Comissão Europeia e do Eurogrupo e uma total desconfiança da independência e imparcialidade destas entidades. Costa nem se deu conta de que, logo à cabeça, ofendeu seriamente as instituições europeias. Para Costa e para todos aqueles que no PS o precederam neste “neo-nacionalismo” bacoco, personalidades como Juncker, Dejsselbloom, Moscovici e Dombrovskis parecem ser pessoas vulneráveis e volúveis, capazes de sucumbir às “indescritíveis pressões” do PSD e do CDS. Os serviços técnicos da Comissão e do Eurogrupo – e já agora de todos os restantes governos nacionais – deverão ser medíocres e incapazes de qualquer juízo autónomo e imparcial. A alegação de Costa é tão descabida que faz por esconder que a Comissão Europeia e o Eurogrupo seriam os primeiros interessados em dizer que tudo estava bem com o orçamento português, se, de facto, esse orçamento, mesmo não sendo bom, fosse, ao menos, satisfatório. A União Europeia deseja tudo menos um “caso” com Portugal. E só faltava que o fosse criar por um capricho de uns tantos antigos governantes ou dirigentes de partidos da oposição.
- O “neo-nacionalismo” de Costa, do PS e da extrema-esquerda é também profundamente hipócrita porque assenta nas premissas infantis de que, por um lado, os políticos portugueses não podem falar sobre a situação portuguesa em fóruns internacionais e europeus e de que, por outro, políticos estrangeiros não podem nunca opinar sobre a situação política portuguesa. Comecemos por esta segunda premissa. O PCP, o Bloco e uma grande parte do PS falaram e falam todos os dias sobre a política da Alemanha, da Hungria, da Dinamarca, da Grécia, da Itália, da Polónia ou de qualquer outro Estado da União. Como falam, aliás, dos Estados Unidos, da Venezuela ou da Coreia do Norte. Mas não admitem que políticos de outros países possam emitir juízos sobre Portugal. Basta pensar que Moscovici ou Dejsselbloom – dois ilustres socialistas – falam na qualidade de titulares de postos europeus, para logo perceber que não só têm legitimidade como têm a obrigação de intervir. Mas vou mais longe: no quadro do Parlamento Europeu e do debate que nele tem lugar, todo e qualquer deputado tem direito à palavra e à palavra livre. E mesmo fora dele, assim como Catarina Martins pode falar em “chantagem da Alemanha” ou Pedro Nuno Santos “não quer saber dos alemães para nada”, também Schäuble há-de poder dizer o que acha sobre a nova política orçamental… Do meu ponto de vista, julgo que as declarações de Schäuble, ao contrário das de Dejsselbloom ou Dombrovskis (que falam por dever de ofício), são contraproducentes… Mas longe de mim, querer cercear-lhe a liberdade de expressão no espaço público europeu.
- Não menos hipócrita é a impostação de que um político português não pode divergir do Governo português nos fóruns europeus. Marisa Matias, João Ferreira, Elisa Ferreira, António Costa, Ana Gomes passaram os anos de 2011 a 2015 a criticar, na Europa e no âmbito das suas famílias europeias, o Governo de coligação PSD/CDS. E com toda a legitimidade, num exercício de democracia europeia absolutamente normal, salutar e até desejável. Mas agora querem calar, com a mordaça do “neo-nacionalismo”, aqueles que publicamente discordam da linha europeia e nacional do Governo Costa e dos seus sequazes. Se isto não é duplo padrão, o que será?
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