A tragédia

João César das Neves
DN 2016.02.25

Portugal enfrenta uma horrível tragédia, com consequências ainda imprevisíveis mas potencialmente desastrosas. A desgraça resulta de um equívoco básico: todos os que comentam a situação nacional têm razão, mas nenhum admite isso. Assim todos se criticam violentamente uns aos outros, sem aceitar a parte de verdade que o outro lado tem, e que seria indispensável ao próprio crítico. Esta oposição está a levar-nos ao desastre.
O debate complexo pode ser clarificado usando os termos sempre erróneos, mas sugestivos, de esquerda e direita. Pode dizer-se que a esquerda está plenamente convencida de que a finalidade da economia é servir as pessoas, em particular as mais necessitadas. Daqui deduz naturalmente que a prioridade política deve ser garantir emprego, subir salários, disponibilizar saúde, educação e outros serviços básicos a toda a população. Pelo seu lado, a direita afirma que o equilíbrio financeiro é indispensável ao progresso, e que ele não existe sem responsabilidade, moderação e credibilidade do país. Isso impõe o cumprimento dos nossos compromissos com os credores, mantendo Portugal no concerto europeu, com acesso aos créditos imprescindíveis.
Ambas as afirmações são evidentemente indiscutíveis e decisivas. Ambas o são simultaneamente, exigindo, portanto, compromissos e cedências. Negar uma delas, que é o que cada lado acusa o outro, seria obviamente inadmissível. Por isso todos andam tão enraivecidos. A esquerda acusa solenemente a direita de insensibilidade criminosa quanto aos efeitos sociais da austeridade, que esta considera indispensável; a direita denuncia a irresponsabilidade, igualmente criminosa, da esquerda relativamente aos efeitos financeiros das benesses que esta proclama. Tal é o diálogo de surdos, em que ambos os lados se acusam mutuamente de cegueira e crueldade. É essa surdez no diálogo que condena Portugal.
Além da tensão crescente, há também a influência da perversão de ambas as posições virtuosas. Se o país precisa urgentemente de sensibilidade social e responsabilidade financeira, ele sofre muito com o oportunismo despesista e a especulação gananciosa, os vícios anexos a cada uma das virtudes. Não há dúvida de que as propostas sociais razoáveis da esquerda vêm misturadas com alguns interesses corporativos, regalias insustentáveis e corrupção abusiva, que as distorcem. Tal como o sensato equilíbrio financeiro que a direita considera indispensável também gera lucros agiotas, aplicações ruinosas e abusos corruptos, que o deturpam. São precisamente essas perversões que cada um dos lados vê no outro, impedindo-o de considerar a verdade que também lá se encontra.
O erro que corrompe estas virtudes é igual: o esquecimento de um terceiro elemento. Para lá da sensibilidade social e da responsabilidade financeira, o país precisa de progredir. Aquilo que transforma um serviço social razoável numa reivindicação exagerada é precisamente o mesmo que converte um investimento sensato numa aplicação fraudulenta: o ganho sem produção.
A produtividade é o aspecto sempre omisso na luta entre activistas sociais e reformadores financeiros. Portugal, para atingir o bem-estar social, além de contas sãs também precisa de poupança, esforço, criatividade, empreendedorismo, inovação, eficiência, dinamismo, dedicação. Afinal, aquilo que tem faltado ao país é precisamente o único ponto em que os dois lados concordam: crescimento económico. E tem faltado porque a esquerda anda empenhada em distribuir benesses que ainda não estão produzidas e a direita arruína projectos produtivos com impostos necessários ao equilíbrio orçamental. Tem faltado porque a esquerda afunda as finanças do país, públicas e privadas, na sua busca de justiça social, e a direita desmotiva os agentes económicos com a ânsia de as equilibrar.
A tragédia nacional resolvia-se se cada lado entendesse a razão do outro e ambos dialogassem para encontrar um compromisso que equilibre ambas as exigências. Dado o nível de desenvolvimento já atingido e a ajuda que vem da Europa, esse equilíbrio não é difícil. A dificuldade está no diálogo, inquinado por retóricas balofas, egos empolados, agendas escondidas e propósitos inconfessáveis.
Portugal enfrentou uma situação parecida em meados dos anos 1920. Na altura o diálogo impossível foi interrompido por uma ditadura que resolveu as finanças e, décadas depois, lançou o crescimento que levou ao bem-estar social. A história não tem de se repetir. Se o diálogo quebrar, o próximo ditador pode não acertar as contas ou falhar o crescimento

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