A oposição direita-esquerda tornou-se secundária

João Marques de Almeida
Observador 13/2/2016

A esquerda nacional recusa-se a reformar o Estado porque ela é, em grande medida, o Estado. Por isso o governo protege os privilégios dos seus. Não defende o “Estado social”, mas o “Estado clientelar”
A oposição direita-esquerda tornou-se secundária. O que não significa que seja irrelevante. As duas famílias políticas são obviamente diferentes. As diferenças resultam de percursos históricos distintos e formam identidades políticas que não se confundem. Não foi a irrelevância que tornou a oposição secundária, mas sim a emergência de outras diferenças políticas, neste momento, mais relevantes; e decisivas para o nosso futuro, sobretudo na Europa.
A dimensão do Estado, antes de mais na vida económica de uma sociedade, constitui a primeira oposição que define os nossos dias. A realidade, a experiência, os números (chamem-lhe o que quiserem) mostram que em muitos países europeus o Estado é insustentável. Por exemplo, no caso de Portugal, a dívida pública nunca parou de crescer durante os últimos vinte anos. O mesmo se passou com muitos outros países europeus. Governos de direita e de esquerda contribuíram para esse endividamento generalizado.
Em vários países europeus, tanto a direita como a esquerda reconheceram a realidade e têm procurado emagrecer o Estado, tornando os serviços públicos mais eficazes e convidando a iniciativa privada a contribuir directamente para o interesse público. É o que tem acontecido nos países do norte da Europa durante os últimos quinze anos. Tendo em conta o que se passa em Portugal, é importante sublinhar que vários partidos de esquerda estiveram ou estão empenhados em reformar o Estado (desde o “New Labour” até ao SPD alemão e aos partidos socialistas da Holanda e dos países escandinavos). Ou seja, a necessidade de reformar e reduzir o peso do Estado nas economias não é uma questão de posicionamento político. Tanto a direita como a esquerda sabem fazer contas, como demonstram vários exemplos europeus.
Tragicamente para os portugueses, apesar dos números (e o PS conhece-os tão bem como o PSD e o CDS), a esquerda recusa-se a adoptar as políticas correctas, como mostra o actual governo. E tem pouco a ver com a ideologia, como se vê com muitas outras esquerdas europeias. A esquerda nacional recusa-se a reformar o Estado porque ela é, em grande medida, o “Estado”. Por isso, o governo protege os interesses e os privilégios dos seus. O que está em causa não é a defesa do “Estado social”, mas sim de um “Estado clientelar”. Pior: neste momento passou a ser necessário satisfazer três clientelas. Não são as ideias que explicam a recusa reformista das esquerdas portuguesas. São os interesses e o poder das suas clientelas.
O resultado é profundamente injusto. Para manter os privilégios de alguns – nos salários, nas pensões e na segurança do emprego – cria-se uma sociedade desigual. Nesse sentido, o “Estado clientelar” é inimigo do “Estado social”. É lamentável que o PS tenha traído os seus valores de igualdade e de justiça social para preservar o poder de alguns.
A segunda oposição é entre um “nacionalismo anti-europeu” e um “patriotismo europeísta”. Há cada vez mais sinais que este governo se prepara para adoptar uma linha “anti-europeísta”. O que significa, desde logo, uma traição à história do PS. Quando observo António Costa, lembro-me frequentemente do que John Stuart Mill disse um dia sobre o seu Pai, James Mill: “O meu Pai amava a humanidade em geral, mas detestava cada pessoa em particular”. No plano abstracto, Costa gosta muito de dizer que “o PS é o partido mais europeísta de Portugal”. Mas depois passa a vida a atacar a “Europa”, em particular a Comissão Europeia. Ele e os seus já acusaram Bruxelas de ser responsável pelos impostos, pelo défice, por um menor crescimento económico e ainda vão culpá-la pelo aumento do desemprego.
Mas o PS foi ainda mais longe e acusa a Comissão de estar dominada pela direita europeia (de tal modo que aparentemente faz agora o que o PSD e o CDS querem; depois do PS ter passado quatro anos a acusar o governo de Passos Coelho e de Portas de fazer o que Bruxelas queria). Se a Comissão tem um Presidente e uma maioria de comissários de direita é apenas por vontade dos cidadãos europeus: desde 2004 que a direita europeia ganha as eleições europeias. A Comissão reflecte isso: a vontade dos eleitores. Mas apesar da realidade eleitoral, o colégio de comissários constitui uma grande coligação entre as famílias políticas europeístas, onde os socialistas têm influência.
Não são as ideias de esquerda que explicam a deriva nacionalista e anti-europeia do governo. O que explica é, mais uma vez, a vontade de chegar ao poder a qualquer custo. Para se tornar PM, Costa fez um pacto com os partidos anti-europeus. O preço poderá ser a transformação do PS num partido que combate a Europa para manter uma aliança com o PCP e o BE. Quem diria em 1975 que isto poderia um dia acontecer?
Em toda a Europa, hoje, as grandes questões são a reforma do Estado de modo a controlar a dívida pública e a posição em relação à Europa. Em muitos dos países europeus, partidos de esquerda estão empenhados em reformar o Estado e recusam-se a usar argumentos populistas e nacionalistas contra a Europa. Para chegar ao poder, o PS abandonou a sua família política. Juntou-se aos populistas anti-europeus e juntos tudo farão para impedir qualquer reforma do Estado. Portugal tem no poder uma coligação reacionária e populista. Isto não tem nada a ver com a esquerda socialista democrática. E não tinha que ser assim. Espera-se que um dia o PS mude. Seria mau para Portugal se o reformismo e o europeísmo passassem a ser um exclusivo da direita.

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