Orçamento, Pangloss e Salazar
Henrique Monteiro | Expresso 2016.02.25
Segundo percebi, o Orçamento ontem aprovado na generalidade no Parlamento, é o melhor dos orçamentos possíveis. Não é um orçamento que entusiasme alguém (salvo talvez os ministros Eduardo Cabrita e Vieira da Silva, uma vez que ao primeiro-ministro é difícil ler-lhe a alma). Mas todos os outros seriam piores.
Lembrei-me da tese de Pangloss no genial livro de Voltaire “Cândido ou Otimismo”. Aquela personagem, percetor de Cândido, assegurava vivermos no melhor dos mundos possíveis. Voltaire construiu um Pangloss inspirado em Leibniz, matemático e filósofo alemão que defendia, precisamente essa tese. O mundo não era grande coisa, sofria de muitos males, mas era o melhor possível de modo a que Deus desagradasse a um mínimo possível. Era, digamos, uma bissetriz de interesses.
Nesse sentido – e também no sentido do otimismo – este orçamento é extraordinariamente ‘panglossiano’ (termo que, não por acaso, ficou plasmado nos dicionários como sinónimo de otimista). O bordão do debate é dado na frase: vocês seriam piores do que nós! Da mesma forma que Pangloss, depois de ter naufragado com o seu aluno na barra de Lisboa, após o terramoto de Lisboa em 1755, consegue achar a catástrofe indispensável, pois provinha de Deus.
Claro que isto não teria mal nenhum, caso não fosse, tal como a teoria de Leibniz, uma espécie de religião ou de teoria unívoca que se esquiva à contestação. Tal como as suas mônadas que por complexos raciocínios transcendentes explicam a existência de Deus, o nosso Orçamento de Estado, por raciocínios um pouco mais básicos, mas ainda assim muito complexos, demonstra a possibilidade de em Portugal se viver muito melhor, com mais justiça e mais igualdade.
É nisto que havemos de crer, quer queiramos quer não, sob pena de sermos acusados dos mais vis crimes. Não é preciso puxar demasiado pelo bestunto para dar exemplos. Ontem mesmo, com uma calma assinalável, o deputado do Bloco de Esquerda Pedro Filipe Soares, subiu à tribuna do Parlamento para proclamar uma das frases mais salazaristas ali proferidas, pelo menos desde que o deputado Cazal-Ribeiro (também conhecido por vociferador) verberou a ‘ala liberal’ de Sá Carneiro, Balsemão, Miller Guerra, Mota Amaral e outros por desejarem a liberdade de expressão e terem dúvidas sobre as colónias. Na altura, tal como Marchueta, então governador civil de Lisboa, a oposição, os estudantes, a ‘ala liberal’ e os católicos da capela do Rato constituíam a voz da ‘anti-nação’. E cito: “A judio-maçonaria demo-liberal; os filocatólicos criptocomunistas e os estudantes lutuo-grevistas são a voz da anti-nação! Há que exterminá-la”.
Disse agora o jovem bloquista, ainda não nascido naqueles gloriosos tempos em que os jovens levavam com a polícia de choque dia sim, dia não, que a oposição a este Orçamento não é nem ao Governo nem à maioria parlamentar, mas sim “uma verdadeira oposição ao país”. Uma voz da anti-nação, como diria o outro…
Ora isto é evidente. Se este é o melhor dos orçamentos possíveis; se Portugal não pode ter senão pior do que isto, que raio de gente se opõe a tal desígnio? Traidores! É por isso que o próprio primeiro-ministro se encarregou (não com a mesma ingenuidade do bloquista) de arranjar inimigos internos ao serviço dos nossos inimigos externos. Fê-lo em relação a Passos Coelho, referindo-se a Paulo Rangel e, finalmente, a todos os que têm dúvidas. Porque, como sabeis, a dúvida é o primeiro passo para a divergência.
E assim um Orçamento panglossiano se junta com o salazarismo serôdio. Como disse Eduardo Cabrita, que não entrou nestas congeminações conspirativas, o plano A foi aprová-lo; o plano B é cumpri-lo com rigor. Estou certo que haverá um plano C: responsabilizar a oposição, os mercados, Bruxelas, a Comunicação Social e quem mais venha pelo que correr mal.
É tão certo que até irrita.
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