FILHOS DE UM ESTADO-GALINHA
Clara Ferreira Alves
Expresso, 2016.02.28
Acha-se normal, no Portugal de 2016, que um homem ou uma mulher de 30 anos sejam abrangidos pelo sistema dos “pais” desde que os pais sejam funcionários públicos
ma das medidas mais extraordinárias deste Governo, ou mais estupidamente extraordinárias, é a da extensão da ADSE, o subsistema de Saúde dos funcionários públicos, a filhos até aos 30 anos. Em que consiste exatamente, para efeitos de proteção social, a figura do “filho” de 30 anos? Qual a sociedade avançada, ou mesmo a sociedade primitiva e tribal, em que um adulto de pleno direito, com idade para ser pai/mãe de família, e que deveria ser idealmente pai/mãe de família, deva ser considerado um filho-família, dependente do sistema de Saúde dos pais? Bom, parece que será apenas, para efeitos restritos, um filho de 30 anos que viva em casa dos pais e que não exerça atividade remunerada. Foi o que li em todas as notícias. Ou seja, um desempregado que vive à custa dos pais e que não foi encorajado a deixar de depender dos pais. E não estamos a falar, penso, de filhos com deficiências ou incapacidades que gerem a dependência, e sim de filhos adultos sem modo de vida autónomo. Ou com modo de vida que escape ao controlo da lei, o que não será difícil. Todos sabemos que a crise e a austeridade geraram modelos abstrusos de convivência social em que filhos de 30 anos vivem em casa dos pais e à conta dos pais, e mesmo das pensões dos pais, mas não podemos culpar a crise e a austeridade de um estado de coisas que em Portugal é socialmente aceite como normal há décadas. A do filho que não mexe uma palha para se desenvencilhar, não arranjou emprego, não tentou arranjar emprego, não emigrou, não se safou. Se aos 30 anos não saiu de casa, é menos provável que venha a sair aos 35 ou aos 40 anos. Em muitas famílias, a situação é considerada normal e convida-se o filho hiperprotegido, com o seu iPhone e o seu bilhete do concerto rock, a deixar-se estar. O Estado, tal como os pais, vela por ele.
Na minha geração, como nas anteriores e nas seguintes, os filhos saíam de casa para se casarem ou porque os pais tinham dinheiro para lhes comprar uma casa, depois de terem comprado o primeiro carro. Era socialmente aceitável, num país europeu no final do século XX, que os pais continuassem a pagar as despesas e os luxos do filho além da sua capacidade económica. A alternativa era a permanência em casa. Em Portugal, nunca se encorajou a saída de casa aos 20 anos de idade, nem a partilha de apartamentos ou casas alugadas por jovens que se recusem a ficar em casa dos pais. Isto só acontecia quando os jovens saíam de casa para irem estudar numa universidade longe, obrigando-os a cortar com os maus hábitos, a lavandaria em casa da mãe, a empregada da mãe, a cozinha da mãe e a cama feita pela mãe. Em cidades universitárias de “expatriados”, como Coimbra, com as suas repúblicas e lares, muitos adultos foram obrigados a ser adultos pela primeira vez e a cuidar deles próprios. E era visível a diferença de autonomia entre estudantes que viviam em casa e os que viviam fora de casa. Os primeiros tinham mais dinheiro disponível e nunca tinham de se preocupar com nada. Nem administrar nada. A casa familiar era a muralha que os separava e protegia do mundo ingrato. O carro era o do papá, ou era o carro comprado pelo papá. E a primeira casa também. A mamã, em Portugal, nunca teve desafogo financeiro suficiente para ser ela a esportular as quantias envolvidas na manutenção destas existências. As classes mais pobres reproduziam a estranha forma de vida, acolhendo os filhos além da idade adulta, estimulando a dependência e a preguiça, cozinhando para eles, lavando para eles, tratando dos assuntos por eles e, de um modo geral, fazendo sacrifícios por eles. Não passava pela cabeça destes pais darem um pontapé no rabo aos filhos e mandarem-nos fazer pela vida. Aqui ou fora daqui. Esta mentalidade matriarcal (encorajada pelas mães) não é condutora do chamado espírito empreendedor, como se calcula. Gerações de adultos foram impedidos de se tornarem responsáveis pela sua vida e pelos seus erros.
Curiosamente, o Estado, empobrecido como está, reproduz a atitude e inclui na sua proteção pessoas de 30 anos que noutros países mais ricos não só são consideradas cidadãos contribuintes e geradores de riqueza como são obrigadas a serem cidadãos capazes de gerar a sua autonomia. Passamos da mãe-galinha para o Estado-galinha.
A medida de “alcance social” que aumenta a idade de 25 para 30 anos passou sem um sussurro na sociedade portuguesa. Ninguém a achou anacrónica, pouco inteligente e um estímulo à passividade e ao conformismo. Ninguém, dos que para aí andam entretidos a apalpar buracos no Orçamento, perdeu tempo com isto. Acha-se normal, no Portugal de 2016, que um homem ou uma mulher de 30 anos, com mais do que idade para tratar do seu sistema de saúde, público ou privado, seja abrangido pelo sistema dos “pais” desde que os pais sejam funcionários públicos. Com ou sem aumento de descontos (a situação é confusa) nada disto faz sentido.
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