Os segredos das bibliotecas religiosas portuguesas
Virgílio Azevedo, Expresso, 20160227
Catálogos das 400 antigas bibliotecas foram estudados durante seis anos. E revelam como a Igreja difundiu o conhecimento
Luana Giurgevich e Henrique Leitão, autores do livro “Clavis Bibliothecarum”, na Biblioteca da Academia das Ciências, antigo Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa FOTO LUÍS BARRA
Esta é a verdadeira chave para entrar no mundo sem fim das antigas bibliotecas dos mosteiros, conventos e instituições religiosas portuguesas, uma chave que abre a investigação científica a novas áreas totalmente inexploradas. E vai certamente obrigar a reescrever a História de Portugal até 1834, ano em que a Revolução Liberal decretou a extinção das ordens religiosas.
Esta é a verdadeira chave para entrar no mundo sem fim das antigas bibliotecas dos mosteiros, conventos e instituições religiosas portuguesas, uma chave que abre a investigação científica a novas áreas totalmente inexploradas. E vai certamente obrigar a reescrever a História de Portugal até 1834, ano em que a Revolução Liberal decretou a extinção das ordens religiosas.
Chama-se “Clavis Bibliothecarum” (“Chave das Bibliotecas” em latim) e é um livro de 1000 páginas que reúne, de uma forma exaustiva, os catálogos e inventários de mais de 400 bibliotecas.
Durante seis anos, Luana Giurgevich e Henrique Leitão levaram a cabo uma tarefa que parecia impossível e que num país do norte da Europa teria certamente exigido uma equipa com um grande número de cientistas. Mas a investigadora pós-doutorada italiana e o historiador de ciência, ambos a trabalhar no Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologias (CIHCT) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, arriscaram e lançaram-se num projeto único, porque nunca tinha sido realizado de um forma tão global e completa em todo o mundo.
O livro será lançado a 3 de março na Biblioteca Nacional, em Lisboa, cabendo a apresentação inicial ao cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na qualidade de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), embora seja também historiador. Tudo porque o livro foi editado pelo Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja (SNBCI), integrado na CEP. Aliás, inicia uma coleção de suporte para a investigação dos bens culturais da Igreja que vai abranger o património cultural, arquitetónico e bibliográfico. Noel Golvers, autor do prefácio, investigador da Universidade de Lovaina (Bélgica), fará também a apresentação na Biblioteca Nacional.
“A História tem de ser reescrita”
“Este livro faz revelações sobre a história das bibliotecas antigas e a História de Portugal, mas não tem conclusões, é um livro aberto, um convite à investigação, inclusive a nós próprios”, esclarece Henrique Leitão. O vencedor do Prémio Pessoa 2014 acrescenta que o principal objetivo da obra “foi localizar e catalogar os livros das mais de 400 bibliotecas que existiam de norte a sul do país, muitas com dezenas de milhares de livros, e dar a conhecer aos investigadores esta realidade tão vasta”. Por isso tem a descrição minuciosa de cerca de 1000 inventários e catálogos.
Sandra Costa Saldanha assinala que “há um manancial infindável de informação que vai levar a reescrever muitas biografias de religiosos e a própria história das bibliotecas antigas portuguesas”. Ou seja, “a História de Portugal tem de ser reescrita em muitas áreas”. A diretora do SNBCI recorda que “até agora havia apenas estudos parciais e uma noção vaga sobre as bibliotecas religiosas, mas com esta obra temos pela primeira vez uma visão global e pormenorizada”. Além disso, “é revelada uma imensidão de factos sobre a história da cultura, da arte e da leitura em Portugal”. Por outro lado, “percebe-se agora que era principalmente graças a estas bibliotecas que os portugueses tinham acesso à cultura e aos livros, muito mais do que através da ação do Estado — isto é, das decisões da Coroa, dos reis — na entrada do conhecimento no nosso país”.
“GRAÇAS A ESTAS BIBLIOTECAS OS PORTUGUESES TINHAM ACESSO À CULTURA, MUITO MAIS DO QUE ATRAVÉS DO ESTADO”
No campo da investigação sobre livros e bibliotecas antigas em Portugal, “estarão abertas oportunidades sem paralelo no passado, pela massa crítica de fontes que o ‘Clavis Bibliothecarum’ recolhe”, afirma ao Expresso Maria Inês Cordeiro, diretora-geral da Biblioteca Nacional. “Esse conhecimento fica agora disponível a quem o quiser utilizar como ponto de partida para a exploração de um tema que, até recentemente, se tem centrado mais na história institucional das bibliotecas do que na história aprofundada das suas coleções”.
Desde cedo o trabalho de investigação de Luana Giurgevich e Henrique Leitão suscitou a atenção da Biblioteca Nacional, “não só pelo tema mas também porque dessa história é feita grande parte da história dos próprios acervos antigos da Biblioteca Nacional, por via da incorporação de livrarias provenientes de casas religiosas como os colégios jesuítas e outros legados eclesiásticos da época da sua fundação, mas sobretudo em resultado da vastíssima incorporação de livrarias dos conventos extintos em 1834”, com a Revolução Liberal.
A liderança da Igreja
Até 1834, a cultura do livro em Portugal dependeu essencialmente das instituições da Igreja, dos mosteiros, conventos, abadias e casas religiosas de todo o tipo. Ao longo dos séculos houve, obviamente, outros focos de compra e de coleção de livros externos à Igreja, tanto de instituições públicas como de particulares, mas a sua dimensão foi sempre muito reduzida quando comparada com os fluxos de livros, número de leitores, verbas envolvidas e volume das coleções religiosas. “Só no século XVIII começaram a surgir instituições não eclesiásticas de dimensões comparáveis às das grandes livrarias religiosas, mas em nenhum período histórico chegou a haver uma estrutura orgânica minimamente equivalente àquela proporcionada pela rede de bibliotecas das congregações religiosas”, conta Henrique Leitão.
O professor e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa considera que conhecer as bibliotecas e o imenso património bibliográfico das ordens religiosas e dos antigos conventos e mosteiros portugueses “é uma tarefa complexa, devido à dispersão dos fundos documentais dessas instituições após a supressão das ordens religiosas em 1834”. A própria dimensão desses fundos, “e o facto de nem sempre se encontrarem suficientemente tratados do ponto de vista arquivístico, torna o levantamento de livros e bibliotecas uma tarefa morosa”. Além disso, o contributo cultural das instituições da Igreja e, em particular, das atividades educativas e culturais das ordens religiosas, “foi muitas vezes menorizado, ou até esquecido, pelos historiadores, daí resultando uma clara escassez de estudos específicos”.
Uma das surpresas para Luana Giurgevich e Henrique Leitão foi a descoberta de que os visitantes exteriores das bibliotecas religiosas eram muito mais do que aquilo que os historiadores supunham. “A abertura ao exterior era grande e havia uma circulação dos livros para fora do espaço religioso, deixando entrever um elevado nível de porosidade dos conventos e casas religiosas, e uma influência no mercado do livro nacional bem maior do que se pensava”, observa a investigadora italiana.
Livros vendidos às escondidas
A venda de livros era uma prática corrente “e uma faceta importante da gestão das bibliotecas”. Mas muitos eram vendidos às escondidas. “Muitas vezes os religiosos compravam-nos nos leilões de uma livraria institucional a preços favoráveis e revendiam-nos a livreiros e a particulares com clara vantagem comercial”. As instituições religiosas fizeram várias tentativas para conter este fenómeno, redigindo leis e sanções para evitar que os frades transformassem os livros numa fonte de lucro, mas nunca foram bem-sucedidas. As queixas dos superiores de conventos carmelitas e beneditinos eram muito frequentes e todos estes mecanismos de compra e venda de livros faziam das instituições religiosas “lugares muito permeáveis, em contactos contínuos com o mercado laico”, constata Luana Giurgevich.
A fome de conhecimento era grande nos conventos. As contínuas queixas dos seus responsáveis contra a proliferação de bibliotecas particulares nas celas dos frades, com a consequente infração do voto de pobreza, assim como a tomada de medidas para restringir o crescimento anómalo dessas bibliotecas, nunca conseguiram conter este fenómeno. Por isso, os investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa falam do conceito de “biblioteca fluida”, ramificada, de uma casa religiosa como um espaço múltiplo de bibliotecas: a institucional, as especializadas (do coro, da botica, da igreja, dos livros proibidos) e as particulares.
A motivação inicial dos autores de “Clavis Bibliothecarum” foi a investigação da história dos livros científicos em Portugal. “Depois do lançamento desta obra, queremos voltar outra vez aos livros científicos, para percebermos quem os lia, quantos existiam, como eram comprados e usados, qual a sua difusão real no nosso país”, afirma Henrique Leitão. Mas os autores querem também analisar os conteúdos das bibliotecas antigas descritos nos catálogos e inventários, de modo a determinarem “quais os livros que ainda existem e quais os que se perderam”.
Durante seis anos, Luana Giurgevich e Henrique Leitão levaram a cabo uma tarefa que parecia impossível e que num país do norte da Europa teria certamente exigido uma equipa com um grande número de cientistas. Mas a investigadora pós-doutorada italiana e o historiador de ciência, ambos a trabalhar no Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologias (CIHCT) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, arriscaram e lançaram-se num projeto único, porque nunca tinha sido realizado de um forma tão global e completa em todo o mundo.
O livro será lançado a 3 de março na Biblioteca Nacional, em Lisboa, cabendo a apresentação inicial ao cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na qualidade de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), embora seja também historiador. Tudo porque o livro foi editado pelo Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja (SNBCI), integrado na CEP. Aliás, inicia uma coleção de suporte para a investigação dos bens culturais da Igreja que vai abranger o património cultural, arquitetónico e bibliográfico. Noel Golvers, autor do prefácio, investigador da Universidade de Lovaina (Bélgica), fará também a apresentação na Biblioteca Nacional.
“A História tem de ser reescrita”
“Este livro faz revelações sobre a história das bibliotecas antigas e a História de Portugal, mas não tem conclusões, é um livro aberto, um convite à investigação, inclusive a nós próprios”, esclarece Henrique Leitão. O vencedor do Prémio Pessoa 2014 acrescenta que o principal objetivo da obra “foi localizar e catalogar os livros das mais de 400 bibliotecas que existiam de norte a sul do país, muitas com dezenas de milhares de livros, e dar a conhecer aos investigadores esta realidade tão vasta”. Por isso tem a descrição minuciosa de cerca de 1000 inventários e catálogos.
Sandra Costa Saldanha assinala que “há um manancial infindável de informação que vai levar a reescrever muitas biografias de religiosos e a própria história das bibliotecas antigas portuguesas”. Ou seja, “a História de Portugal tem de ser reescrita em muitas áreas”. A diretora do SNBCI recorda que “até agora havia apenas estudos parciais e uma noção vaga sobre as bibliotecas religiosas, mas com esta obra temos pela primeira vez uma visão global e pormenorizada”. Além disso, “é revelada uma imensidão de factos sobre a história da cultura, da arte e da leitura em Portugal”. Por outro lado, “percebe-se agora que era principalmente graças a estas bibliotecas que os portugueses tinham acesso à cultura e aos livros, muito mais do que através da ação do Estado — isto é, das decisões da Coroa, dos reis — na entrada do conhecimento no nosso país”.
“GRAÇAS A ESTAS BIBLIOTECAS OS PORTUGUESES TINHAM ACESSO À CULTURA, MUITO MAIS DO QUE ATRAVÉS DO ESTADO”
No campo da investigação sobre livros e bibliotecas antigas em Portugal, “estarão abertas oportunidades sem paralelo no passado, pela massa crítica de fontes que o ‘Clavis Bibliothecarum’ recolhe”, afirma ao Expresso Maria Inês Cordeiro, diretora-geral da Biblioteca Nacional. “Esse conhecimento fica agora disponível a quem o quiser utilizar como ponto de partida para a exploração de um tema que, até recentemente, se tem centrado mais na história institucional das bibliotecas do que na história aprofundada das suas coleções”.
Desde cedo o trabalho de investigação de Luana Giurgevich e Henrique Leitão suscitou a atenção da Biblioteca Nacional, “não só pelo tema mas também porque dessa história é feita grande parte da história dos próprios acervos antigos da Biblioteca Nacional, por via da incorporação de livrarias provenientes de casas religiosas como os colégios jesuítas e outros legados eclesiásticos da época da sua fundação, mas sobretudo em resultado da vastíssima incorporação de livrarias dos conventos extintos em 1834”, com a Revolução Liberal.
A liderança da Igreja
Até 1834, a cultura do livro em Portugal dependeu essencialmente das instituições da Igreja, dos mosteiros, conventos, abadias e casas religiosas de todo o tipo. Ao longo dos séculos houve, obviamente, outros focos de compra e de coleção de livros externos à Igreja, tanto de instituições públicas como de particulares, mas a sua dimensão foi sempre muito reduzida quando comparada com os fluxos de livros, número de leitores, verbas envolvidas e volume das coleções religiosas. “Só no século XVIII começaram a surgir instituições não eclesiásticas de dimensões comparáveis às das grandes livrarias religiosas, mas em nenhum período histórico chegou a haver uma estrutura orgânica minimamente equivalente àquela proporcionada pela rede de bibliotecas das congregações religiosas”, conta Henrique Leitão.
O professor e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa considera que conhecer as bibliotecas e o imenso património bibliográfico das ordens religiosas e dos antigos conventos e mosteiros portugueses “é uma tarefa complexa, devido à dispersão dos fundos documentais dessas instituições após a supressão das ordens religiosas em 1834”. A própria dimensão desses fundos, “e o facto de nem sempre se encontrarem suficientemente tratados do ponto de vista arquivístico, torna o levantamento de livros e bibliotecas uma tarefa morosa”. Além disso, o contributo cultural das instituições da Igreja e, em particular, das atividades educativas e culturais das ordens religiosas, “foi muitas vezes menorizado, ou até esquecido, pelos historiadores, daí resultando uma clara escassez de estudos específicos”.
Uma das surpresas para Luana Giurgevich e Henrique Leitão foi a descoberta de que os visitantes exteriores das bibliotecas religiosas eram muito mais do que aquilo que os historiadores supunham. “A abertura ao exterior era grande e havia uma circulação dos livros para fora do espaço religioso, deixando entrever um elevado nível de porosidade dos conventos e casas religiosas, e uma influência no mercado do livro nacional bem maior do que se pensava”, observa a investigadora italiana.
Livros vendidos às escondidas
A venda de livros era uma prática corrente “e uma faceta importante da gestão das bibliotecas”. Mas muitos eram vendidos às escondidas. “Muitas vezes os religiosos compravam-nos nos leilões de uma livraria institucional a preços favoráveis e revendiam-nos a livreiros e a particulares com clara vantagem comercial”. As instituições religiosas fizeram várias tentativas para conter este fenómeno, redigindo leis e sanções para evitar que os frades transformassem os livros numa fonte de lucro, mas nunca foram bem-sucedidas. As queixas dos superiores de conventos carmelitas e beneditinos eram muito frequentes e todos estes mecanismos de compra e venda de livros faziam das instituições religiosas “lugares muito permeáveis, em contactos contínuos com o mercado laico”, constata Luana Giurgevich.
A fome de conhecimento era grande nos conventos. As contínuas queixas dos seus responsáveis contra a proliferação de bibliotecas particulares nas celas dos frades, com a consequente infração do voto de pobreza, assim como a tomada de medidas para restringir o crescimento anómalo dessas bibliotecas, nunca conseguiram conter este fenómeno. Por isso, os investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa falam do conceito de “biblioteca fluida”, ramificada, de uma casa religiosa como um espaço múltiplo de bibliotecas: a institucional, as especializadas (do coro, da botica, da igreja, dos livros proibidos) e as particulares.
A motivação inicial dos autores de “Clavis Bibliothecarum” foi a investigação da história dos livros científicos em Portugal. “Depois do lançamento desta obra, queremos voltar outra vez aos livros científicos, para percebermos quem os lia, quantos existiam, como eram comprados e usados, qual a sua difusão real no nosso país”, afirma Henrique Leitão. Mas os autores querem também analisar os conteúdos das bibliotecas antigas descritos nos catálogos e inventários, de modo a determinarem “quais os livros que ainda existem e quais os que se perderam”.
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