Tecnologia e regulação

JOSÉ MIGUEL PINTO DOS SANTOS Público, 07/04/2015

Nos depoimentos prestados no âmbito de inquéritos a escândalos financeiros, onde quer que seja, nota-se uma constante: todos estavam a cumprir regulamentos ou ordens dos reguladores, e a culpa ou é do sistema ou dos computadores.
A tecnologia afeta o comportamento humano. Não é aditiva: é modificadora. Não sou eu mais capacidades adicionais que a máquina ou a app me proporcionam. Sou um eu diferente. E a diferença nem sempre é para melhor.
Todos conhecemos pessoas compostas e cordatas que, numa porta, dão sempre passagem, mas que num cruzamento, e com um volante na mão, fazem valer os seus direitos de passagem até ao milímetro. E a gravidade dos acidentes que daqui resultam é relação direta entre esta intolerância legalista multiplicada pela potência da tecnologia.
Da observação desta relação, Hans Monderman (1945-2008), um engenheiro de tráfego, tirou uma conclusão revolucionária: dado que a tecnologia não irá desaparecer, para tornar as ruas e as estradas mais seguras é necessário reduzir a ilusão de que o meu direito se sobrepõe ao direito dos outros e à realidade concreta da situação. Monderman podia ter-se voltado para Cristo e para o Evangelho, mas optou por uma via paralela. Se as proibições e os limites dão ilusão de segurança, acabem-se com eles, ou pelo menos reduzam-se ao mínimo. Nas cidades e aldeias de Friesland, na Holanda, Monderman tirou os sinais, os semáforos, e até as linhas de demarcação da via. Onde pôde até eliminou as demarcações físicas entre o espaço para peões e o espaço para veículos. Tudo isto resultou num aumento da ambiguidade e da incerteza. E a consequência foi uma alteração de comportamentos: conduta mais cuidadosa individualmente, maior cooperação coletivamente, e consequente redução drástica de acidentes. Um estudo realizado pelo Transport Research Laboratory-UK concluiu que só a eliminação das linhas separadoras das faixas de rodagem reduzia acidentes em 35%.
Não que Monderman fosse contra todos os sinais e regras. Percebia que um sinal indicador de curva apertada cumpre uma função. Entendia é que sinais e regras em excesso fecham os condutores nos seus direitos e tornam-nos mais agressivos na sua condução, e portanto o seu uso devia ser limitado e ter carácter mais informativo que prescritivo.
Algo de semelhante se passa nas outras áreas de atividade humana: regras e algoritmos desresponsabilizam quem devia ser mais prudente. Nos depoimentos prestados no âmbito de inquéritos a escândalos financeiros, onde quer que seja, nota-se uma constante: todos estavam a cumprir regulamentos ou ordens dos reguladores, e a culpa ou é do sistema ou dos computadores. Na regulação financeira estamos a precisar de mais Monderman e menos Sarbanes-Oxley, de mais juízo e menos regras.
Professor de Finanças, AESE

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