E se os sírios de hoje fossem os judeus de ontem?
Graça Franco | RR online 23-04-2015 18:50
No domingo vamos dizer: #somostodospessoas
No próximo domingo lembremo-nos do que pedimos ao mundo que fizesse por Timor. Vistamo-nos de branco ou coloquemos nas nossas janelas uma faixa branca e unamo-nos em oração ou silêncio (para os que não forem crentes) pelos mortos do Mediterrâneo, num gesto de luta pelos direitos humanos dos que fogem às várias guerras de África e buscam na Europa o direito a alcançar o progresso e viver em Paz.
O desafio #somostodospessoas, a que a Renascença se associa em união com uma série de organizações católicas como a CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz), responde ao apelo do Papa Francisco contra a globalização da indiferença. Vale a pena fazer esse pequeno gesto. Basta pensar na força que teve a multiplicação de iniciativas simbólicas no caso de Timor emprestando-lhe voz.
Proponho que lhe somemos um pequeno exercício de consciência. Aproveitemos essa pausa para lembrar o cenário da II Guerra Mundial, pensando no exemplo do cônsul português em Bordéus. Também ele teve de pensar no custo de salvar da morte milhares de judeus concedendo-lhes o almejado visto. Ou os salvava do desespero ou os condenava à morte certa e abafava a voz da consciência com a desculpa de que tinha que garantir o futuro dos seus 14 filhos.
Afinal, acatando as ordens de Salazar, não estava a fazer mais do que "cumprir o seu dever" e isso lhe bastaria para salvar a sua carreira diplomática continuando uma vida cómoda e desafogada.
Aristides de Sousa Mendes era um homem rico e de sucesso, mas acabou expulso do MNE, obrigado a recorrer à "sopa dos pobres", com toda a sua família porque optou por, contrariando as ordens de Lisboa, passar 30 mil vistos a refugiados em fuga do terror nazi.
Hoje, justamente, consideramo-lo um herói. Quando pensamos nas contas feitas pelo comité de direitos humanos da ONU, que nos fala de uma previsão de um milhão de refugiados sírios só nos próximos cinco anos e na necessidade urgente de lhes conceder asilo, vemos que o mundo não mudou tanto quanto gostaríamos.
Em certa medida é toda a Europa que enfrenta o dilema de Sousa Mendes. Antes de ponderar os riscos, antes de metermos mais uma vez a cabeça na areia para não os vermos chegar às nossas praias (ao ritmo de dez mil ao mês), antes de fazermos contas à nossa capacidade de acolhimento e integração, à nossa comodidade e segurança, antes mesmo de pensarmos no dever de garantir o direito ao trabalho e ao futuro dos nossos filhos, vale a pena pensar que se deve sobrepor a tudo isso o simples dever de salvar estas vidas em desespero porque #somostodospessoas.
Isto não implica abdicar da obrigação de procurar soluções sólidas indo à raiz do problema e combatendo-o nas suas várias frentes. A começar numa acção séria e concertada internacionalmente que trave o crescendo de loucura, de terror associado ao extremismo religioso de forças como o ISIS, a Al-Qaeda ou o Boko Haram, e a acabar no dever de solidariedade económica, combatendo a pobreza extrema e ajudando o desenvolvimento do continente perdido.
Tudo isto sem cair na armadilha hipócrita dos paliativos que apenas servem para nos calar a consciência. Foi isso que a Europa fez nos últimos dois anos.
Basta comparar os meios financeiros disponíveis: 9,3 milhões de euros/mês contra os actuais 2,9 milhões para perceber que nunca a operação "Triton" (para resgate de náufragos e combate ao tráfico ilegal de pessoas no Mediterrâneo), em curso, poderia ter a eficácia da anterior operação "Mare Nostrum".
A redução de meios foi acompanhada de uma alteração substancial no objectivo: a primeira visava o salvamento dos náufragos e entrega à justiça dos traficantes (mesmo em águas internacionais) e a actual limita-se à faixa até 30 milhas da costa, o que dificulta o resgate dos náufragos, mas não garante a redução das partidas.
A comparação de meios aéreos afectos deixa ainda mais claro o desinvestimento: três aviões, quatro helicópteros e duas aeronaves não tripuladas deram lugar a dois aviões e um único helicóptero (o italiano) sem reforço de meios navais que repusesse o desequilíbrio. Podíamos continuar, mas não vale a pena porque na génese da decisão de mudança de rumo estava a tese de que a uma maior segurança na viagem estaria sempre assegurado um maior incentivo à tomada de risco. A "Mare Nostrum" acabou porque na Europa venceram as vozes dos que a achavam demasiado eficaz.
Contudo, a Europa avara, que se empenha em poupar num mês o que gasta na realização de uma cimeira, não discutirá os custos de uma operação de salvamento de meia-dúzia de turistas perdidos num veleiro em risco.
Os últimos três meses provam que as teses do "incentivo" não tinham razão. Apesar de muito maior risco, o número de emigrantes em fuga do continente africano subiu em exponencial: nos primeiros três meses deste ano registaram-se 30 vezes mais mortes (quase duas mil contra meia centena até Abril do ano passado) e nem isso impediu um ritmo de chegadas sem precedentes. Quem tem de escolher entre a morte certa por permanecer em terra e o risco quase certo de morrer no mar não pensa duas vezes.
É aqui que a Europa mostra a sua incapacidade de ler o mundo. Na quarta-feira, o arcebispo do Iraque dizia, em Portugal, que os europeus deixaram de perceber o valor da Paz. É esse valor muito superior ao bem-estar económico que leva boa parte dos peritos a aconselhar uma nova politica oficial de concessão de vistos a refugiados, que combata o tráfico, mas tenha em conta a dimensão do problema real, envolvendo os 29 países europeus. Uma acção concertada e que não recai em mais de 80% sobre os seis do costume (Alemanha, Itália, Grécia, Suécia, França e Holanda), responsáveis pela quase totalidade dos 163 mil vistos de asilo despachados em 2014.
Nas contas da ONU, feitas por François Crépeau, e citadas pelo "Guardian", só no caso sírio a Grã-Bretanha deveria preparar-se para acolher 14 mil novos refugiados ano até 2020. É desta nova dimensão que estamos a falar.
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