Gunter Grass: o nosso século

Miguel Freitas da Costa | observador 13/4/2015, 18:48

Anunciava já, para quem o quisesse ver, as revelações futuras que tanto escandalizaram. É um inolvidável exercício de jornalismo ficcional (passe a contradição). São essas coisas que ficam.
Günter Grass nasceu em Dantzig, hoje Gdansk, cidade polaca que foi uma das primeiras cartadas no jogo de Hitler pela conquista do ‘espaço vital’ que queria para a Alemanha – nessa Polónia que foi uma das trinta moedas do negócio entre o Führer e Estaline, firmado no famoso Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939.
O ‘meu século’ foi o título que o Prémio Nobel de 1999 deu a um dos seus livros menos lembrados e talvez um dos mais notáveis: cem curtos contos, um por cada ano do malfadado século XX. O século XX, o ‘nosso’ século – um século normalmente contado na sua versão para crianças das escolas como uma simples batalha entre as forças do Mal e os ’justos’. Até 2006, Günter Grass era um desses ‘justos’, sentencioso e celebrado. Depois da guerra e de uns largos meses entregue aos cuidados das tropas americanas, teve vários ofícios, estudou arte em Dusseldorf e Berlim. Tornado famoso no mundo inteiro pelo seu primeiro romance ‘O tambor de lata’ (1959), em que retratava com a devida repulsa a Alemanha nazi, esteve sempre, sempre, do lado do povo, o que quis dizer em muitas ocasiões do lado de regimes comunistas como Cuba e a República Popular da China e, em geral, do lado de todas as causas de boa reputação nos meios bem pensantes. ‘O tambor de lata’ foi passado ao cinema por Volker Scholondorf em fins dos anos 70: teve a Palma de Ouro em Cannes e o Óscar de melhor filme estrangeiro. Premiado, louvado e honrado na Alemanha e fora dela, era um valor indiscutível, literária e moralmente. Recebeu em 1965 o Prémio Georg Büchner, em 1977 a Medalha Carl von Ossietzky, foi nomeado membro honorário da Academia Americana de Artes e Ciências. Em 1999 a Academia Sueca outorgou-lhe a consagração final, o Prémio Nobel da Literatura. Tinha à época 72 anos. Atrás dele estavam vários outros romances e escritos, quase todos (ou todos) publicados em Portugal. Era, além de escritor, pintor, escultor, ensaísta, artista gráfico. Tinha escrito discursos para Willy Brandt durante muitos anos. Desconfiava da reunificação alemã. Olhava com suspeita o ‘sonho americano’.
A feliz harmonia entre a grande vedeta internacional da literatura contemporânea alemã e o mundo governante intelectual e político, nem sempre totalmente plácida (a causa de Salman Rushdie foi nos anos 80 um pomo de discórdia entre Grass e a Academia das Artes de Berlim), terminou de vez em 2006. Em vésperas da publicação da sua autobiografia ‘Descascando a cebola’, Grass fez questão de contar a sua carreira de jovem alemão alistado nas organizações do Partido Nacional-Socialista e depois voluntário nas SS. Fê-lo numa entrevista ao jornal Frankfürter Allgemeine. Pouco depois foram também publicadas pela revista americana The New Yorker as suas reminiscências do tempo de guerra (‘Como passei a guerra’), devidamente ilustradas com a fotografia do garboso militar que era então. Estava quebrado o feitiço.
Na atribuição do Nobel, a Academia de Estocolmo elogiara o retrato que ele traçava nos seus livros da ‘face esquecida da história’. Juste retour des choses, ao revelar a face ‘esquecida’, ou escondida, da sua própria história, Grass acabou por correr o risco de ficar condenado a não ser lembrado senão por causa dela. É a chamada justiça poética – ou pode ter sido, como insinuaram alguns espíritos maldosos, o preço de uma artimanha publicitária para relançar um autor em perda de notoriedade. Mas não faz verdadeira justiça ao escritor que tinha o bom gosto de destacar entre as suas admirações literárias Herman Melville ou William Faulkner ou, principalmente, o grande e esquecido John dos Passos (mesmo que fosse pelo seu ‘retrato das multidões’), e que escreveu provavelmente as melhores das suas páginas na fase ‘póstuma’ da sua carreira, longe do ‘realismo mágico’ de que foi ‘semente’ na Europa – Deus lhe perdoe – e que alguma crítica especialmente gaba nos seus livros.
No mesmo ano em que a Academia Sueca o distinguiu, a revista The New Yorker publicou ‘Reunião de curso’ (Class Reunion), uma peça de (semi) ficção sobre uma nostálgica confraternização de antigos correspondentes de guerra alemães. É com certeza uma das suas mais memoráveis criações e um exemplo do melhor de que era capaz Grass. Anunciava já, para quem o quisesse ver, as revelações futuras que tanto escandalizaram. É um inolvidável exercício de jornalismo ficcional (passe a contradição). São essas coisas que ficam.
Gunter Grass morreu em Lubeck com 87 anos.

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