A angústia de Silva Lopes

JOÃO CESAR DAS NEVES
DN 2015.04.15

José da Silva Lopes, falecido a 2 de Abril, foi um dos economistas portugueses mais eminentes, respeitados e influentes das últimas décadas. Membro do reduzidíssimo número de ocupantes dos dois cargos cimeiros da política económica nacional, ministro das Finanças e governador do Banco de Portugal, tinha desempenhado funções muito relevantes em variadas instituições numa longa carreira. A sua experiência e sabedoria faziam da sua uma das vozes mais ouvidas e consideradas em temas económicos.
É possível distingui-lo por razões diversificadas, políticas, financeiras, analíticas e editoriais. Aquilo que mais o destacava, porém, era a honestidade e o vigor com que vivia o dilema fundamental da economia. Ouvi-o várias vezes expressar essa dificuldade numa frase singela mas sentida: "Tenho o coração à esquerda e a cabeça à direita." Via-se que isso era algo que o perturbava e, por vezes, até angustiava.
O drama não era pessoal e idiossincrático, pois a raiz é profunda e generalizada. Na verdade, este problema, que a teoria formulou como "conflito eficiência-equidade", constitui um dos elementos mais fundamentais da vida em sociedade. As leis económicas da concorrência, produtividade e eficácia chocam muitas vezes com a benevolência, generosidade e redistribuição pelos grupos na comunidade; frequentemente, é preciso sacrificar abundância à justiça ou igualdade à produção. Qualquer dirigente que se defronte seriamente com problemas sociais sente-lhe o embate a cada passo.
Silva Lopes distinguia-se sobretudo pela candura, sinceridade, aflição até, com que assumia a dificuldade. Muitos sentem-se confortáveis levados só pela cabeça para posições de direita, ou apenas pelo coração para a esquerda, sem se preocuparem muito com o outro lado. Silva Lopes vivia inquieto procurando seguir ambos, pois tanto o propósito social como a exigência produtiva têm de ser admitidos e respeitados. Aliás, o dilema é impossível de evitar, pois todos, mesmo os tacanhos, o sentem. De facto, até os capitalistas mais gananciosos têm coração e os anarquistas radicais reconhecem a cabeça. Mas só os sábios e perspicazes, como Silva Lopes, experimentam de forma aguda e pungente a exigência da dicotomia.
Isto não significava que fosse hesitante ou ambíguo. Todos lhe conhecem frases cortantes e contundentes com que clarificava as questões. Ninguém pode dizer que fugisse aos embaraços ou empatasse nas respostas. Só que também não simplificava artificialmente o que era complexo. A sua orientação ideológica era conhecida, pois o seu coração estava firmemente à esquerda; mas isso não o cegava à tolice das posições unívocas de qualquer quadrante.
Num debate televisivo respondeu a um sindicalista que invocava direitos adquiridos: "Os nobres na Revolução Francesa também tinham muitos direitos adquiridos." Foi ele igualmente quem formulou uma das críticas mais certeiras à nossa política económica. Há anos, quando o governo da altura sofria forte contestação popular, disse qualquer coisa como: "Não percebo por que razão evitam fazer reformas a sério. Já que suportam tantas críticas violentas, podiam dar razão aos maldizentes e mudar mesmo as coisas. Como não é possível serem mais atacados do que são, ao menos arrumavam a casa." Isto pode ser dito por quase todos os ministros das últimas décadas.
Qual a solução para o dilema entre eficiência e equidade? Não existe. A única resposta séria é uma vida em busca permanente de um equilíbrio impossível de atingir, mas sempre tentado. O sucesso está não numa fórmula simples ou receita linear, como pensam tantos na direita ou na esquerda, mas num compromisso exigente e pragmático de tentar, em cada caso concreto, o melhor possível; sempre prontos para corrigir os erros, pedir desculpa, aperfeiçoar na próxima.
Esta via e os seus dilemas foram desenvolvidos de forma genial no melhor texto económico recente assinado por um autor da geração de Silva Lopes. Em 2009, o papa Bento XVI apresentou o primeiro documento social da Igreja do terceiro milénio e segundo século da doutrina social católica, a encíclica Caritas in Veritate. O título e mote é a apresentação da mesma dualidade. O sujeito da frase é o coração, pois o propósito último da vida tem de ser social, segue a caridade. Mas isso só se consegue obedecendo à cabeça e respeitando a verdade: "Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. (...) sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo" (3); "há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor" (30).

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