Mário Soares: o “desmancha-presidentes”
PAULO RANGEL Público 15/04/2015 - 06:03
Correia de Campos escreveu, segunda-feira, sobre os desafios presidenciais no espaço do centro-direita.
Invocou expressamente, com um tom mavioso, a vontade de ajudar esse espaço político a resolver a sua equação. Mas o seu sempre inspirado e já habitual uso da ironia não passou ali de uma manobra de diversão, destinada a tentar desviar as atenções. Na verdade, se olharmos para os últimos quinze dias, quem verdadeiramente precisa de ajuda – e de ajuda de emergência –, em matéria de eleições presidenciais e até em matéria de estratégia política em geral, é o PS e o seu líder António Costa.
A forma enfadada como recebeu a candidatura de Henrique Neto, o modo absolutamente infeliz com que tem gerido o suposto avanço de Sampaio da Nóvoa, a forma como não consegue disciplinar o seu núcleo mais próximo, a roda livre em que deixa andar o presidente Carlos César, a necessidade de recorrer a Guterres para clarificar os dados do jogo, a dança de nomes de proa como Jaime Gama ou Maria de Belém – tudo, mas tudo mesmo, evidencia um desnorte que, há meses atrás, se julgaria insuspeitado. E se a isto somarmos o eventual advento de uma candidatura com o lastro de esquerda de Carvalho da Silva ou com o populismo de feição social de Marinho e Pinto, as dificuldades vão adensar-se e não é pouco. Ninguém tem feito notar, porém, que há, nos últimos desenvolvimentos da estratégia presidencial da área do PS e no embaraço do seu líder e dirigentes, um padrão comum com actos eleitorais anteriores. A pergunta é, pois, pertinente: tratar-se-á apenas e só de inabilidade de António Costa ou haverá aí uma explicação mais estrutural e mais profunda? Não haverá também, para usar uma expressão tristemente célebre, alguma “mão que se esconde por detrás do arbusto”?
Basta olhar para as duas últimas eleições presidenciais (2006 e 2011) para perceber que esta recente polémica obedece a um padrão comum do PS. E talvez se encontre até, mais atrás, nas eleições de 1980, 1986 e 1996, matéria para especular sobre uma tendência quase genética na forma como o PS lida com a questão presidencial.
Recuemos aos antecedentes de 2006. O PS, mais ou menos convicto, mais ou menos relutante, preparava-se para aceitar a candidatura de Manuel Alegre. Mas apareceu Mário Soares que, talvez por considerar que tinha um “droit de regard” a respeito da eleição presidencial, se impôs a si próprio como candidato. Inspirado na tradição italiana de eleger gente de idade provecta (como Pertini ou Napolitano, só para citar os socialistas), julgou ter alguma hipótese de voltar a Belém. Esta ideia de que lhe cabe a ele uma prerrogativa de escolha do candidato da esquerda ou, pelo menos, de que dispõe de uma “especial intuição e vocação” para o efeito tinha, aliás, sido ensaiada nas europeias de 2004, em que a campanha do malogrado Sousa Franco era vista por Soares como um tirocínio para vir a ser o “seu” candidato em 2006. A verdade é que o atrito pessoal entre Soares e Alegre – só muito recentemente superado – levou a que Soares, pura e simplesmente, sem qualquer rebuço ou rebate, estragasse a estratégia presidencial do PS. Seriam sempre eleições difíceis, mas com dois rivais na compita, tornaram-se impossíveis.
E se recuarmos a 2011, vamos encontrar uma história similar. Agora com o PS e até o Bloco a patrocinarem a candidatura de Alegre, Soares não resistiu a interferir de novo. E foi assim que insuflou a candidatura de Fernando Nobre que, mais uma vez, prejudicou, e muito, a posição do PS (independentemente das hipóteses de sucesso na contenda em que se jogava a reeleição de Cavaco).
De alguma maneira, este padrão de conflitualidade interna, a propósito da questão presidencial é mais profundo e estrutural. Foi assim em 1980, em que o PS apoiou Eanes, apoio que Soares recusou expressamente e com estrondo. Foi assim em 1986 em que o PS se dividiu visceralmente entre Zenha e Soares. E foi ainda assim, em 1996, em que Sampaio se lançou sozinho, contra a vontade presumível de Guterres (mas que este sabiamente não quis contrariar). Em 1986 e em 1996, as coisas correram bem; mas em 1980, em 2006 e 2011 correram francamente mal para os desígnios do PS e de Soares.
Aquilo que muitos não querem ver – ou quiçá não estão mesmo a ver – é que Sampaio da Nóvoa é mais uma criação de Mário Soares e da sua particular apetência para ser o “president-maker” do regime. E, mais uma vez, pese embora todo a sua afeição pelo PS, não hesita em encorajar, divulgar e sustentar essa candidatura, sem ter em conta os objectivos estratégicos do partido e sem medir os prejuízos que, até em termos de timing, lhe pode inflingir.
Foi Mário Soares que, nas suas múltiplas iniciativas “anti-troika”, lançou o nome, a personalidade e o perfil de Sampaio da Nóvoa. Tem sido ele, ao longo dos últimos dois anos, que, nos bastidores e na sua imensa rede de contactos e prestígio, foi formulando a hipótese, arregimentando entusiastas e acalentando o candidato.
Nada tenho contra Mário Soares. È sabido, aliás, que admiro o seu europeísmo convicto e o modo como exerceu o múnus presidencial (que tantos, na minha área política, criticam). De resto, ainda na sexta-feira passada, pude elogiar a sua leitura competitiva dos poderes presidenciais e critiquei até a visão extremamente parlamentarista de Jorge Sampaio e de Cavaco Silva. Visão essa que, estou convicto, foi assumida de boa-fé no sentido de apoiar os governos em funções, mas que redundou, num e no outro caso, na necessidade de usar poderes drásticos, pouco compatíveis com a visão que diziam perfilhar.
Limito-me a analisar a história dos posicionamentos do PS e de Mário Soares em sede de presidenciais e a verificar que, especialmente nas eleições mais recentes, Mário Soares tem sido aquilo a que as crianças chamam um “desmancha-prazeres”; um “desmancha-presidentes”, portanto. António Costa deveria meditar sobre isto.
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