Oliveira: nem um filme

Eduardo Cintra Torres CM | 05.04.2015 00:30 

Dezenas de horas de TV – mas nenhum canal passou um filme de Oliveira. 
Ao contrário do que se escreveu nestes dias, não achei hipócritas os elogios generalizados a Manoel de Oliveira (1908-2015) por muitos que não viram ou não gostaram do seu cinema. Ele conseguiu um feito raro: ser intransigente na sua arte e ao mesmo tempo admirado pelo povo. Resultou esta raridade da sua figura íntegra, afável; de ter vivido para além do centenário; de ter trabalhado até ao fim; do reconhecimento nacional e mundial; de ter realizado há sete décadas um filme popular, em torno da humanidade mais simples, a criança, muito retomado em reportagens de TV; e porque, como tantos génios criadores, plantou a sua universalidade na sua terra portuense e duriense. Por isso, tantos portuenses, os portugueses mais ciosos do que é seu, querem que, morto, seja como em vida: no Porto. Menos que bairrismo, é orgulho, é a vibração da terra que perpassa entre as pessoas. É uma coisa que se sabe, sem se conhecer a obra que fez de Oliveira grande. Quando trasladaram Amália para o Panteão, populares diziam no cemitério: "Roubam-nos a Amália, ela era do povo." Passava ali o mesmo sentido de pertença, de ligação que Amália sempre manteve com Lisboa. Não admira que Pinto da Costa fizesse uma inusitada declaração sobre Oliveira no dia da sua morte e que o fizesse no seu canal portuense de TV: tendo construído o Futebol Clube do Porto como símbolo da cidade, operou a apropriação dum outro valor supremo da condição portuense. Também não há hipocrisia em que os elogios só encham os media quando alguém morre: é na morte que se consuma a obra, que se faz o balanço. Já que é Páscoa, recordemos que o cristianismo nasce na morte de Cristo, não no seu nascimento e nos episódios da sua vida. A morte comove; os vivos aproveitam também para se libertarem do seu remorso: "Oliveira morreu, e eu, que não vi os seus filmes, agora sinto culpa", foi o mote não-dito. Só a TV não sente remorso. A morte dum Grande é um grande momento para a TV. Aconteceu com Amália, Eusébio, Cunhal, a irmã Lúcia. Dedicaram horas a Oliveira agora, às cerimónias, declarações, bons sentimentos; falaram do homem; dos seus filmes só mostraram uns segundos. Dezenas de horas de TV – mas nenhum canal passou um filme de Oliveira, um que fosse. A RTP, com vários canais públicos, não passou nenhum, só uma entrevista, isto é, um programa de televisão. A RTP nem ouviu o que uma tripeira de gema disse ao ‘Telejornal’: "Este senhor, com a idade que tinha, merecia que as nossas televisões mostrassem mais aquilo que ele fez." 

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