Os suicidas e os hipócritas: a política nas greves da TAP
José Manuel Fernandes | Observador 20/4/2015, 14:26
Os pilotos têm muita culpa na sua greve suicidária. Mas há mais responsáveis. Em especial quem, para ganhar umas eleições em 1999, realizou com eles um acordo obsceno. Às vezes é bom ter memória.
Há tragédias que têm um dom: obrigar-nos a repensar as nossas preocupações. Fazer-nos reflectir sobre o sentido das nossas queixas. Levar-nos perceber a pequenez de certas reivindicações e certos protestos.
O que se está a passar desde há alguns dias no Mediterrâneo é um desses momentos. Em dois naufrágios sucessivos, mais de mil pessoas morreram apenas porque queriam chegar à Europa. À nossa Europa. À Europa contra a qual protestamos todos os dias. A uma Europa que, apesar de todos esses protestos, continua a ser um destino procurado pelos deserdados, a uma Europa que, apesar de todas as queixas, continua a ser um dos melhores locais do Mundo para viver, trabalhar, desfrutar a vida. Mesmo nos seus dias difíceis.
É nestas alturas que olhamos para as razões da greve dos pilotos da TAP e ainda mais estupefactos ficamos. Sabemos que é uma greve suicida, pois pode provocar danos irreparáveis na empresa que, apesar de tudo, lhes paga os ordenados. Sabemos também que é uma greve estúpida, pois parece dar todas as razões aos que pedem – como eu peço – a mais célere privatização da empresa, onde os pilotos seriam obrigados a serem, pelo menos, mais responsáveis. É por fim uma greve egoísta, pois recupera um famoso acordo, velho de quase 16 anos, que outorgava aos pilotos direitos, por alturas da programada privatização, de que nunca beneficiariam os restantes trabalhadores da empresa.
Escrever sobre esta greve é um pouco como chover no molhado – já toda a gente se mostrou tão surpreendida como indignada. Escrever sobre ela no dia de uma tragédia como a que foi vivida no Mediterrâneo, pode parecer fútil. Mas mesmo assim faço-o, e por uma razão simples: o conflito que hoje enfrentamos é, em boa parte, uma herança de uma decisão política tomada em véspera de eleições, e suspeito que só aconteceu para não prejudicar os resultados eleitorais do partido então no governo. Bem sei que não foi caso único na história da nossa democracia, mas como ilustra bem a forma como, muitas vezes, a demagogia trata de condicionar a democracia, tal como ilustra bem a forma como se pode actuar com a maior hipocrisia política, é importante recordá-lo. Porque está esquecido e porque estamos, de novo, num tempo eleitoral.
No dia em que o acordo foi assinado, 10 de Junho de 1999, Portugal estava a três dias de ir às urnas numas eleições europeias. O PS apostara forte, candidatando como cabeça de lista Mário Soares, procurando ganhar balanço para, em Outubro, chegar à maioria absoluta nas legislativas. Havia no ar a ameaça de uma requisição civil (o governo de então, de António Guterres, já tinha decretado uma, em 1997), mas com o acordo tudo se resolveu, tudo se acalmou, o PS ultrapassou os 43% nas Europeias e o vento pareceu ficar de feição para a desejada maioria mas legislativas – a maioria que falharia por um único deputado, levando ao “pântano” que levou ao pedido de demissão do primeiro-ministro dois anos depois.
O acordo, como é óbvio, não foi assinado directamente com o ministro que na altura tutelava a TAP, João Cravinho, mas apenas pelo presidente da empresa, Norberto Pilar, e pelo do sindicato dos pilotos. Passadas as eleições europeias, parece não ter havido pressa em enviar o acordo para o Ministério, pois isso só sucedeu a 29 de Junho. E Cravinho, depois, também deixou passar umas semanas para se pronunciar, pois só fez um despacho a 14 de Julho. Mas isto depois de já ter feito um outro despacho, a 18 de Junho, onde referia, por exemplo: “Apraz-me registar o desenvolvimento do processo negocial em curso, visando a celebração de novo Acordo de Empresa em condições de viabilizar a sustentabilidade da TAP. Nessa perspetiva, considero conveniente o prosseguimento das vias já abertas, incluindo a participação dos trabalhadores no capital social duma transportadora aérea com origem na TAP”. Mais, pois acrescentava detalhes: “o Acordo deve prever a designação pelos trabalhadores de um administrador que não exerça funções executivas”.
Ou seja: ainda antes de receber o texto do acordo, João Cravinho dava força à via negocial que estava em curso e permitira evitar a incómoda greve em tempo de eleições. Mais tarde, a 14 de Julho, reforçaria em novo despacho a orientação anterior, escrevendo muito precisamente: “manifesto a minha concordância quanto à atuação referida no ponto VI da carta de 99.06.29 do Senhor Presidente do Conselho de Administração da TAP”. Era nesse ponto que se dava conta de intenção de preparar o decreto-lei necessário para permitir cumprir o acordo com os pilotos, nele prevendo a famosa cláusula de participação no capital de empresa entre 10% e 20%.
O tempo passou, as eleições foram-se, Cravinho foi substituído no governo por Jorge Coelho, a privatização às mãos da Swissair borregou – e a própria Swissair faliu – e os governantes trataram de esquecer o acordo de 1999. Afinal, já não era preciso para as eleições.
Os pilotos vieram agora recuperá-lo. Aparentemente, só para causar ruído: um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral de República, de 2012, considera esse acordo “inconstitucional e ilegal”. Repito: não só ilegal, como inconstitucional. Ou seja, não há nenhuma possibilidade de a actual administração ou o actual Governo o considerarem legítimo. É, por isso, uma reivindicação fútil e que os pilotos sabem ser fútil.
(Pequena nota à margem: João Cravinho, que sempre se apresenta como uma espécie de consciência moral da República mas que não só assinou os dois despachos já citados, como não pode ter deixado de dar instruções à administração durante o processo negocial, veio agora dizer que as exigências dos pilotos são um “acto de má-fé e um dolo”, procurando fazer crer que as negociações com os pilotos ocorreram “à sua revelia” e que, para o seu resultado ser válido, era preciso ter submetido o acordo a conselho de ministros, o que nunca aconteceu. Felizmente que podemos ler os despachos que emitiu na altura e, assim, ficar a perceber o grau de desfaçatez com que alguns políticos jogam com a muita falta de memória que hoje há em tantas redacções.)
Não creio que, desta vez, apesar de voltarmos a estar em ano de eleições, se vá ceder aos pilotos. Seria um suicídio político em cima de um suicídio sindical.
Mais: o que acaba de se passar com a abertura dos aeroportos açorianos às companhias low cost – por imposição da União Europeia, sublinhe-se –, mostra-nos bem o que está em causa: o proteccionismo, a inexistência de um mercado aberto, não beneficiou nem os açorianos, nem todos quantos gostariam de visitar os Açores, apenas protegeu os interesses das companhias instaladas e dos seus grupos de pressão internos.
É por tudo isto que esta greve é especialmente imoral: procura arranjar uma forma de todos, sejam passageiros ou contribuintes, paguarem privilégios de quem já é especialmente privilegiado: os pilotos. É obsceno, para me ficar por aqui.
PS. O governo do Syriza não tem dinheiro nos cofres, tem a receita fiscal a cair, a economia – que estava a recuperar – está de novo de pantanas, e mesmo assim Varoufakis ainda acha que pode chantagear a Europa, mesmo depois de um outro povo europeu, o finlandês, se ter pronunciado claramente sobre o que pensa de mais ajudas à Grécia. Isto vai mesmo acabar mal.
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