A Caça

Paulo de Almeida Sande | Observador 6/4/2015, 16:52

O mal é que um ministro é hoje em dia uma presa apetecível. Mas não só, o mesmo acontece aos deputados e restantes homens e mulheres na política.
Face à multiplicação de candidatos à Presidência da República reais ou presumidos, ocorre-me uma interrogação que as eleições legislativas do Outono também alimentam: porque razão tanta gente quer ser ministro; ou secretário de estado; ou deputado? E como temos vindo a perceber também, até Presidente da República.
Dirão não ser assim tantos. Eu afirmo que são ainda mais. Embora sejam cada vez menos. Não é um paradoxo ou contradição: é interminável a lista de candidatos a cargos públicos, bastando, para o comprovar, acompanhar com alguma atenção o que se passa no interior dos partidos políticos em períodos pré-eleitorais. Mas há simultaneamente muita gente a recusar ser ministro ou a ter um envolvimento político e partidário.
Seriam ainda menos se reflectissem no que os espera. Uma tragédia para a qualidade da democracia? Talvez. A razão escreve-se depressa: ninguém gosta de fazer de presa.
Mas, devagar: a vontade de ser ministro não é nova. Em 1965, Fernando Luso Soares publicou um livro com o título “vontade de ser ministro”. A PIDE resumiu o seu conteúdo: “(…) os conceitos estabelecidos pelo protagonista (…) parecem deprimentes, trocistas, rebaixantes ou amesquinhadores dos políticos situacionistas, em geral, e afinal no fundo, consequentemente, da própria Situação Política, isto é: do Governo da Nação”. Consequentemente, proíba-se. E referindo explicitamente o Conselheiro Acácio, o censor remetia a síndrome para tempos ainda mais remotos.
É certo que os portugueses adoram ser ministros, e tanto mais quanto mais veementemente o negam. Afinal, essa (transitória) condição abre-lhes portas ao melhor dos currículos: o de ex-ministro, um ser com acesso a vontades poderosas, que assina sempre ex-ministro disto ou daquilo e como tal é referido nos oráculos das televisões, sendo olhado com inveja e respeito por amigos e desconhecidos. Há tempos, um ministro disse dessa condição estar ela a transformar-se de currículo em cadastro (terá sido Bagão Félix, se me engano desde já me penitencio). Mas ainda assim os convenientes parecem superar as desvantagens, pelo menos a crer na quantidade de gente que continua a ter vontade de ser ministro. E que mal tem, perguntarão?
O mal é que um ministro é hoje em dia uma presa apetecível. Mas não só, o mesmo acontece aos deputados e restantes homens e mulheres na política. Um ministro – um homem público em geral – é objecto de caça (perdoem-me a expressão) na comunicação social (nalguns meios), nas redes sociais, em blogs, na opinião pública manifestada em espaços de opinião. E não se trata só do escrutínio normal e desejável sobre as suas competências, probidade e honestidade, ou a forma como exerce o cargo. É o esmiuçar da vida privada, rendimentos e património, a casa onde vive, os hábitos de vida: a conhecida expressão “vícios privados públicas virtudes” deixou de fazer sentido, pois um virtuoso homem público não pode ter senão vícios públicos, por muito privados que sejam. Nada inverte mais depressa o ónus da prova do que a eleição ou nomeação para um cargo político, e tanto mais depressa quanto mais importante o cargo.
Poderá argumentar-se que sempre foi assim, mas não é verdade: nunca foi tanto assim. A curiosidade humana sobre os poderosos, ou os entendidos como poderosos, é de facto uma constante ao longo da História, mas nunca foi tão fácil e generalizada (e aceite) a devassa da vida privada dos detentores do poder.
O que mudou? Porque vivem os políticos sob o escrutínio constante da curiosidade pública, numa impiedosa caçada aos pormenores da sua vida privada? Talvez a razão principal seja a transformação sofrida pelo espaço público, amplamente teorizada por Habermas. Resumindo, as novas formas de comunicação acompanham e amplificam (a causalidade é a do ovo e da galinha) a transformação acelerada das representações e relações sociais, económicas e políticas, criando e consolidando espaços de debate e discussão em que participa virtualmente quem quiser participar. Novos modos de comunicar geram debates alargados que convocam todos os assuntos, dos conflitos da margem aos processos de decisão da esfera pública alargada. Ao mesmo tempo, cria-se uma osmose com a chamada a esse espaço de matérias do domínio informal, da vida privada, em particular dos indivíduos mais notórios. E a intervenção junto do poder público e dos decisores de grupos anteriormente excluídos dessa capacidade, faz-se por vezes com recurso à convocação de temas da vida privada, chamada essa que a curiosidade alargada dos indivíduos legitima, mais ou menos informalmente.
Ao serviço dessa nova realidade, apoiando-se nela, estão por exemplo as fugas de informação, cujo peso crescente na nossa vida colectiva se explica pela rapidez com que circulam, condicionando a acção política num raio temporal muitíssimo curto.
Acresce, como factor adicional, a dessacralização do poder, mais uma vez consequência e causa da referida informalização do espaço público, que terá começado já, de alguma forma e paradoxalmente, com Maquiavel, paladino do absolutismo renascentista, que secularizou a política e a dotou de valores próprios, autonomizada em si mesma, através de uma relação nova, cínica e utilitária, entre política e moral. Aos poucos, a percepção pública dessa dessacralização – pessoas iguais a nós! – combinada com o acesso crescente e fácil à informação sobre a vida privada dos políticos,  alimentada pela curiosidade secular dos públicos transformados em espectadores/comentadores da esfera pública no novo espaço alargado, aumentou à desmesura a visibilidade e exposição dos políticos e dos governantes, com as consequências conhecidas.
É lamentável? É a vida. Mas a caça ao homem e à mulher em cargos públicos tem como consequência haver cada vez menos gente com capacidade e competência para a mais difícil das missões: representar a vontade de um colectivo alargado dos seus concidadãos decidindo em conformidade com ela com isenção, honestidade e capacidade, ao serviço (palavra decisiva) do bem público. Até porque – outro tema maldito, a que voltarei quando tiver tempo e (confesso) coragem – o que auferem nessas funções é reduzido face aos proventos que podem obter na actividade privada. O ciclo é vicioso, pois os menos competentes e capazes são também presas mais fáceis da curiosidade pública, seja por serem de vidro os seus telhados seja porque em geral se prestam a essa curiosidade (é grande o tributo prestado pela incompetência à vaidade).
Não pretendo com esta crónica afirmar que somos sempre governados pelos menos bem preparados, embora isso seja voz comum a respeito de quem nos governa, legisla e até, se calhar, julga, supervisiona, regula…. Ou será que apenas mudou a percepção (pelas razões aliás acima invocadas) e que, na verdade, os grandes homens e mulheres de antanho – líderes e estadistas com nomes marcados a letras de ouro na história das nossas nações – nunca existiram verdadeiramente? Teriam eles, como agora os seus sucessores e em proporção semelhante, defeitos de magnitude, vícios estranhos escondidos da curiosidade alheia pela inexistência de telemóveis, satélites, redes sociais? Seriam tão incompetentes como aquilo que dizemos ser os actuais, apenas mais resguardados pela incipiência das tecnologias e a distância para com os cidadãos?
Boa parte dos mitos políticos da História não resistiu ao escrutínio da moderna comunicação, ao jornalismo do século XXI, às redes sociais e à permanente inquirição da vida dos governantes. O tipo de vida extravagante de Churchill teria liquidado a sua carreira política muito antes da 2ª guerra; Kennedy teria tido em Marilyn a sua Lewinski; a mania das grandezas de De Gaulle faria dele um alvo a abater por parte dos impiedosos bloguistas da nossa era. E a impreparação do “nosso” Sidónio Pais teria transformado os versos laudatórios de Pessoa a seu respeito numa verrinosa catilinária.
Não, os políticos de hoje não são necessariamente mais mal preparados. Ou não seriam, não se desse o caso de cada vez menos gente bem preparada ter vontade de ser ministro; ou deputado; ou presidente da república. E é por isso que temos o direito de exigir a protecção da vida privada de todos os cidadãos, mesmo dos poderosos, desde e sempre que os eventuais vícios privados não ponham em causa a capacidade de prestar um serviço isento, desinteressado e competente à comunidade que os escolhe.
Temos o direito de escolher os melhores de entre nós e os melhores de entre nós deviam ter a obrigação cívica de aceitar representar-nos e agir em nosso nome. A caça à vida privada dos homens e mulheres públicos não ajuda em nada a que isso aconteça.

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