Defesa da civilização

JOÃO CÉSAR DAS NEVES | DN 2015.04.22

Abandonando a civilização perde-se até aquilo que se queria obter ao deixá-la. Nos 40 anos das eleições constituintes muitos acham esta lição sabida, mas crescem os sinais de que temos de defender as regras mais básicas da convivência contra ataques vastos e profundos. Os maiores perigos vêm, não dos maus, mas dos enfurecidos.
A indignação, sobretudo justa, é má conselheira. A cada passo ouvimos pessoas respeitáveis e serenas dizerem-se disponíveis para subverter as instituições ou até a cultura e ética, devido ao legítimo repúdio que sentem pelos efeitos da crise. Fundadores do regime como Vasco Lourenço ou Mário Soares afirmam propósitos subversivos. Mas quando abandonamos a democracia perdemos até aquilo que pretendíamos ao deixá-la.
Portugal é caso benigno, onde pouco se passa da retórica e simbolismo. Na Europa, da extrema-direita da Frente Nacional francesa e Liga Norte italiana à extrema-esquerda do Podemos espanhol e do Syriza grego, a ameaça extremista tem um rosto, não só visível, mas ameaçador. Mais longe o ressurgimento da barbárie é pior, da arrogância imperial de Putin às milícias terroristas. Após décadas de aparente progresso, regressam as ameaças aos valores mais essenciais da civilização, por parte de movimentos e guerras, frias ou quentes. Temos de recordar que abandonar esses valores é perder tudo. Para evitar o retorno aos horrores de 1791, 1848, 1914 ou 1939, o nosso contributo, mesmo se pontual, é decisivo. Para isso é preciso compreender alguns elementos centrais da ameaça à civilização.
Primeiro, nunca são os bárbaros que abandonam o civismo, pois esses nunca o tiveram. Muitos nazis pertenciam à elite de uma das culturas mais sofisticadas da história e até Pol Pot (1925-1998), líder do Khmers Vermelhos genocidas cambojanos, estudou quase cinco anos em Paris. Também hoje, aqueles que vemos cometer atrocidades infames são produtos da sofisticação moderna. Se podemos classificar como bárbaros ignorantes os membros do Boko Haram da Nigéria ou Al-Shabaab da Somália, o Estado Islâmico do Iraque e da Síria usa métodos das redes sociais para atrair simpatizantes europeus, enquanto movimentos extremistas prosperam nos países ricos, da Holanda à Grã-Bretanha, Espanha, França e Itália.
Por outro lado, quem abandona a civilização só o faz com boas razões. Ninguém prefere o caos pelo caos ou a demolição pelos escombros. Não se agride a própria sociedade sem excelentes intenções e só uma raiva profunda leva a desprezar o regime socioeconómico que nos sustenta. As posições anti-sistema resultam de incapacidade em suportar a desilusão, sofrimento e injustiça inevitáveis na evolução social. Vozes que ouvimos a atacar democracia, capitalismo ou União Europeia justificam-se pelas falhas e inconvenientes que daí resultam para si ou para outrem. Tal como Robespierre, Lenine e Mussolini, cujo mal esteve menos nos motivos que nos meios.
Por isso é tão decisivo relembrar que quem abandona a civilização perde até aquilo que pretendia obter ao deixá-la. A revolta destrói o que está, mas só raramente chega a implantar algo melhor. Nos poucos casos em que o atinge, é sempre demasiado tarde para os que a geraram. Como diz a célebre frase atribuída a vários, mas sempre referida ao terror jacobino, "a Revolução, como Saturno, devora os seus filhos" (ver A Morte de Danton de Georg Büchner, 1835). O século passado provou isso de uma forma muito mais sangrenta do que os anteriores, quando enveredou pela agressão em vez da negociação. O colapso foi de tal forma terrível que em 1945 o mundo gritou "nunca mais!" e conseguiu algumas décadas de paz relativa, promoção da democracia e cooperação diplomática. Mas estas lições nunca ficam sabidas permanentemente.
Hoje como há 80 ou 170 anos, as mudanças tecnológicas, económicas, sociais e geopolíticas estão a criar choques que, além de benefícios globais, implicam ajustes e prejudicam muitos. De novo o progresso vem acompanhado de perturbações que levam alguns a repudiar a civilização; sem perceberem que arriscam tudo o que têm. Por isso, no meio dos abalos da evolução, crescentemente seremos chamados a defender os valores básicos que permitem à humanidade sobreviver e prosperar.
Nas próximas décadas, em qualquer local onde habitemos, todos confrontaremos a escolha entre diálogo e agressão, concórdia e violência, defesa de interesses pessoais ou da paz social. A luta será dura e longa, e é essencial determinar cedo de que lado estamos: da civilização paciente ou da irritação compreensível.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António