Drones no shopping

JOÃO TABORDA DA GAMA | Público, 2015.04.30

No meu tempo aeromodelismo não era mainstream, nem geoestratégia. Aeromodelismo era uma reportagem cíclica no fim do Telejornal, ou no meio do programa do Totobola, às quartas, alternando com peças sobre taxidermia. A modalidade era apresentada e mostravam-se imagens de uns sujeitos à roda à roda, tipo lançamento do martelo mas com um avião na ponta, tudo com ar domingueiro, e que terminava invariavelmente com uma entrevista ao Júlio-Isidro-praticante-de-voo-circular--controlado. Também havia os aviõezinhos telecomandados, vendidos a preços de carros a sério, naquele tipo de lojas que parece ser para crianças mas não é, templos de bricolagem frequentados por uma tribo habitual, masculina, que fala numa língua própria e que afasta toda a gente, sobretudo qualquer criança curiosa. Brincadeiras para o papá.
Mas tudo mudou e agora aeromodelismo são drones e há drones por todo o lado, nos centros comerciais, nas listas de prendas das festas de anos, nos natais, nas lojas e nas salas de estar das famílias mais insuspeitas.
Uma das primeiras interrogações que isto levanta é a de saber qual a lei que se aplica ao Zezinho de 10 anos que vai para o meio da rua comandar o seu drone Parrot 2.0. No fundo é saber se são precisas mais leis, ou se as que temos bastam. E já se ouve um clamor, ai se ele usa a câmara para filmar os vizinhos do terceiro no quarto, ou se o brinquedo cai no A4 do vizinho do quinto, ou se entra pela farmácia a dentro e destrói o expositor de calicidas. Sem ter pensado muito, não me parece que sejam necessários grandes monumentos jurídicos para lidar com o Zezinho e o seu drone que o pai lhe deu no Natal (até porque neste ano o Natal calhava com a mãe).
O baixo custo do equipamento não trouxe a felicidade apenas ao Zezinho, mas também a exércitos de soldados e cientistas que contam hoje com estes gadgets no seu labor. Esta utilização não recreativa das burocraticamente chamadas "aeronaves remotamente pilotadas" está difundida mas não é coisa bem resolvida (como se diz na linguagem das relações). São os drones que matam em missões de segurança, que vigiam e protegem de ameaças externas ou internas, que gerem colheitas, distribuem comida, ou contam leões-marinhos.
O uso militar de drones em especial levanta profundas questões éticas e morais, filosóficas, psicológicas. Verdadeiras questões, muitas sem resposta certa ou errada, inquietações em cima de toda a inquietação existencial do tema bélico. A possibilidade de seleção individualizada de pessoas a abater é boa, ou má? A guerra passa a assassinato? Mas não o era já antes? Se houver guerras justas, as guerras através de drones podem ser consideradas justas? Não sendo tripulados, ou pelo menos não sendo tripulados presencialmente, existirá espaço para o arrependimento, para a contramotivação do soldado? Para evitar erros? Deixarão os drones espaço para a rendição (aqui a questão é também jurídica)? Os pilotos de drones, a milhares de quilómetros de distância dos seus alvos, também sofrem de stress de guerra.
O debate à escala global é intenso, tão intenso quanto a força do fenómeno - os drones vieram para ficar. Estando o mundo inteiro a discutir o que se deve fazer com os drones, o que deixar dentro e fora da lei, e sendo inegável a sua valia tecnológica e científica, talvez fizesse sentido Portugal considerar tornar-se um polo de de-senvolvimento de soluções de ponta nesta matéria, conjugando o impulso público necessário com a criação de um quadro legal incentivador e não castrador. Há território desertificado bom para testes, não existe ameaça terrorista e temos bom clima (não ia ser eu o primeiro a considerar uma solução de crescimento para Portugal sem usar o argumento do clima). Podíamos também ser um bom exemplo na utilização de drones para gestão da segurança pública, do congestionamento das cidades, na gestão dos recursos marinhos. Se é apenas para tratar do drone do Zezinho, mais vale ficarmos quietos.

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