Teoria do resmungo

JOÃO CÉSAR DAS NEVES | DN 2015.04.08

Portugal é resmungão. É mesmo muito resmungão. Chegámos a elevar o resmungo a património nacional, ainda que ausente das listas oficiais. Tivemos até resmungões de génio, como Diogo do Couto, Bordalo Pinheiro ou Almada Negreiros. Para lá do valor cultural, frequentemente omisso, o tema ganhou candência pelo recente regresso da institucionalização do processo. Cada vez mais temos partidos, movimentos, blogues e organizações criados exclusivamente para resmungar. Os autodenominados "indignados", "inflexíveis" ou "revoltados", assumem claramente não pretenderem mais do que rezingar.
Entender o processo implica clarificar noções e estabelecer aspectos conceptuais. Tal exige uma teoria do resmungo de que aqui apenas se apresentam os prolegómenos.
O elemento definitório do resmungão é a sua natureza eminentemente negativa. Não afirma nada, não acha nada, não contém nada. Limita-se a grunhir desconforto. Resmungar tem ligações ao universo lógico do protesto, mas com especificidades próprias. Pode definir-se como um embrião, um esboço, um arremedo de protesto. O conceito é claro; a confusão resulta do pulular de resmungos disfarçados de outras actividades.
Quem protesta tem um alvo definido, uma questão substantiva, um fim determinado; quem resmunga pouco mais formula do que um incómodo. Um ataque ou insulto dirigem-se a vítimas concretas que pretende atingir, com um propósito particular; o resmungão limita-se a arejar irritação. Emitir um protesto honesto e sincero tem razões conscientes e válidas para acusar alguém. O resmungão finge protestar adoptando teorias alheias, das quais ignora não só a validade mas muitas vezes até o conteúdo. Limitar--se a apontar os "suspeitos do costume" não é protesto genuíno. Tais insultos devem em rigor ser despromovidos a resmungos.
O rezingão também se costuma disfarçar de crítico. Aliás a maior parte das pessoas que resmunga diz estar a fazer críticas, embora se encontre longe disso. De facto, ainda mais do que no protesto, uma crítica exige análise, identificação de causas, relações, efeitos e consequências. Claro que, para se mascarar assim, o resmungo tem de fingir basear-se em teorias e raciocínios fundamentados. Mas o menor abalo manifesta-os como postiços e frágeis. Em geral limita-se a invocar aquilo que "toda a gente sabe" e ele evidentemente ignora. Quando, por exemplo, culpa o euro, a Alemanha ou a troika pela crise nacional, o resmungão não faz a menor ideia dos efeitos da moeda única, subtilezas da política europeia ou alternativas ao programa de ajustamento. Limitando-se a repetir argumentos da moda não chega a criticar. Realmente apenas rezinga.
A diferença entre um resmungo e uma proposta não seria preciso explicar se tantos daqueles não viessem mascarados destas. É que, para se apresentar uma alternativa válida, é preciso definir detalhes, apontar métodos, identificar custos e obstáculos, descrever efeitos. Como a maior parte dos alvitres comuns carecem desta razoabilidade, as alegadas sugestões e projectos milagrosos não passam de rabugice.
Persiste, porém, o mistério: sendo por natureza negativo ou vácuo, por que razão o resmungo é tão popular? O motivo advém do prazer evidente que gemer traz ao praticante. Como o grunhido sabe melhor em público, podemos considerar este como um vício social, o que explica o pulular de verdadeiros festivais de resmunguice, oficiais ou improvisados. A delícia é tal que, como vemos frequentemente, chega a gerar dependência. A cada passo encontramos pessoas viciadas em roncos e escravas de rabugice. Alguns até já o fazem em código, bastando nomear o assunto para se deduzir o dislate.
O prazer próprio da actividade é descarregar dos nervos, aliviar a tensão, arejar a mente. Embora este benefício seja significativo, sobretudo em momentos de sofrimento agudo, não chega para justificar a popularidade. O verdadeiro motivo que sustenta os resmungões profissionais, aditivamente presos ao vício, são os prazeres conexos, resultantes dos disfarces referidos. Quem resmunga acha mesmo estar a formalizar um protesto, por vezes até a analisar um problema ou mesmo a apresentar uma solução. Isto alimenta-lhe o orgulho, pois se sente mais capaz do que aqueles que injuria, mantendo a ilusão de ter a solução da questão ou, nos casos mais avançados, de ser o incompreendido salvador da pátria. Acima de tudo, isto é feito com custo mínimo, evitando os esforços e maçadas que uma verdadeira análise e proposta trariam. No fundo, um resmungo é uma solução grátis. E inútil.

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