Inveja dos doutorados

JOÃO MIGUEL TAVARES 21/04/2015 - 01:29
Frustrado rima com extremado, e por isso me incomodam tanto os centros de estudos que louvaminham ideologias e regimes bacocos, com agendas políticas travestidas de projectos de investigação.
Faço notar que na semana passada estive muito caladinho, sem pronunciar uma única vez a palavra “sociólogo”, “CES” ou sequer “doutorado”. Ainda assim, só no P3 fui brindado com três textos de faca na liga: um do precário inflexível João Camargo, que me acusou de desferir “uma ataque abjecto” ao CES; outro do sociólogo (e antigo deputado do Bloco) João Teixeira Lopes, que me apelidou de “novo bobo da nossa provinciana corte”; e mais um do “happy economist” Gabriel Leite Mota, que me acusou de produzir “resíduo tóxico”, de ter “pobre capacidade argumentativa e intelectual” e de ser um “javardo da opinião”.
Isto, sim, são belas manifestações de capacidade argumentativa e intelectual, oriundas de licenciados, doutorados, investigadores e professores. É curioso esta gente achar que eu não respeito a universidade, os doutorados ou as bolsas da FCT, quando se há pecado que cometo é o oposto desse: ter uma visão demasiado romântica da universidade, onde o amor à ciência e ao saber se sobrepõe ao combate ideológico e às convicções políticas de cada um. Por incrível que pareça, na minha cabeça um académico deveria poder ser, em simultâneo, investigador no CES e votante no CDS-PP. Trabalhador no Observatório Sobre Crises e neoliberal. Aluno de Boaventura Sousa Santos e admirador de Milton Friedman.
Em resumo: sou um gajo pouco sofisticado e pouco sensibilizado para a dimensão “crítica” das ciências sociais. Ou, para citar o sofisticado Mr. Happy Economist, o que tenho é “inveja” dos doutorados. Bem visto. Tal como da boca das crianças se escuta a verdade, também o raciocínio lactente não é desprovido de vantagens: Mr. Happy Economist está certíssimo. Eu tenho mesmo inveja dos doutorados. A vida académica atrai-me bastante. Os quatro anos que passei na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (parece que sou licenciado numa ciência social) foram belos tempos. Pensei muito seriamente continuar a estudar depois de acabar o curso, até porque poderia ter avançado logo para doutoramento. Mas não deu. Queria casar-me. Experimentar o jornalismo. E, sobretudo, precisava de ganhar a vida. Uma bolsa não pagava a casa, o carro, e muito menos a família.
E é precisamente por eu não ter conseguido doutorar-me, e por hoje procurar contribuir com os meus impostos para que outros possam ter o que eu não tive, que me irrita sobremaneira o abastardamento da universidade e o exército de doutorados descamisados, que chegam aos 35 e aos 40 anos sem perspectivas para as suas vidas. A Teresa de Sousa, que muito prezo, escreveu há dois dias que quando vê “pessoas a brandir contra o excesso de doutorados” lhe dá “vontade de sacar, metaforicamente, da pistola”. Espero que o tiro, ainda que metafórico, não seja para mim. Eu não acho que haja doutorados a mais em Portugal — acho apenas que a questão da sua empregabilidade não deve ser menorizada.
Quando a Teresa afirma que “esses doutorados sabem pelo menos que dispõem de ferramentas que lhes serão fundamentais para construir um futuro melhor”, parece-me que está a desvalorizar o potencial de frustração dessas ferramentas se a sociedade e a universidade forem incapazes de reconhecer o seu mérito. Frustrado rima com extremado, e por isso me incomodam tanto os centros de estudos que louvaminham ideologias e regimes bacocos, com agendas políticas travestidas de projectos de investigação. Basta olhar para Espanha para ver onde isso levou — é o que pretendo fazer na próxima quinta-feira.

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