O caso Freitas do Amaral
Paulo Tunhas | Observador | 16/4/2015
O Professor Freitas do Amaral é, parece, incapaz de se dar conta de tudo aquilo que na realidade escapa a um número limitado de ideias que a pouco e pouco absorveu e que fazem a vez de visão do mundo.
Angela Merkel sofre de um mal danado: tem “ideias malucas”. Quem o declarou foi o Professor Diogo Freitas do Amaral, em Fafe, numa reunião curiosamente intitulada “Encontro internacional de causas e valores da humanidade” (nada mais?). Quais são as “ideias malucas” da chanceler alemã aos olhos de Freitas do Amaral? Adivinharam: o “neoliberalismo”, “uma ideia destituída de qualquer fundamento económico ou social”.
Seria interessante, dando de barato que “neoliberalismo” é susceptível de uma de uma definição razoavelmente unívoca, saber o que significa a ausência de “fundamento económico e social” de uma ideia política. Aparentemente há, para o Professor Freitas do Amaral, ideias políticas verdadeiras (as que possuem o tal fundamento) e falsas (as que o não possuem). É uma proposição um bom bocado difícil de sustentar. Que certas ideias políticas, em contextos particulares, possam ser benéficas e outras prejudiciais (mesmo que formuladas com a melhor das intenções), que umas funcionem e as outras não, isso percebe-se. Mas tal coisa nada tem a ver com verdade ou falsidade, com o fundamento ou a ausência dele.
Esta questão é, no entanto, puramente académica. Em contrapartida, não é de todo académica a curiosidade que suscita a expressão utilizada por Freitas do Amaral: “ideias malucas”. Ou eu leio mal, ou há um indisfarçável tonzinho de superioridade na expressão. Haveria vastas regiões da realidade que por inteiro escapariam à pobre chanceler alemã e com as quais ele, Freitas do Amaral, teria um contacto íntimo, que obviamente o salvaria desse horror das “ideias malucas”. Esse tom de superioridade encontra-se em muito do que tem dito desde há já um razoável tempo. Terá esse tom razão de ser – afinal de contas há mesmo espíritos superiores, aos quais convém perdoar um eventual excesso de comprazimento com as proezas próprias – ou não?
Há talvez um critério para decidir na matéria: o das “ideias malucas”, justamente. E no capítulo, o Professor Freitas do Amaral que me perdoe, não me parece que se saia muito bem. Poderia dar vários exemplos, mas um basta. Muita gente se lembra ainda do original episódio das caricaturas dinamarquesas de Maomé, em 2006. Freitas do Amaral, então ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates, andava muito preocupado com a falta de decoro das ditas, que tanto tinham excitado os muçulmanos, e disse compreender a furiosa reacção destes. Quando lhe censuraram a atitude, insurgiu-se contra aqueles que apelidou de “ignorantes”, no meio de várias declarações e justificações das declarações e justificações das justificações. A única coisa que se percebia claramente de tudo aquilo era que a sua concepção da liberdade não pecava por um excesso de firmeza. Até que veio uma proposta genial. E que tal, para cimentar a amizade entre europeus e árabes e assim docemente calar extremismos islamistas, organizar um torneio de futebol euro-árabe?
Essa proposta, feita com a pausada solenidade a que nos habituou, e com a autoridade do prestigiado jurista capaz de dividir o vazio em vinte e cinco alíneas, sempre me pareceu um grandioso exemplo do que é uma “ideia maluca”. Ao Professor Freitas do Amaral suponho que não. E porquê? Aparentemente, porque é incapaz de se dar conta de tudo aquilo que na realidade escapa a um número limitado de ideias que a pouco e pouco absorveu e que fazem a vez de visão do mundo a grande parte da esquerda e às suas adjacências. A quantidade de “ideias malucas” que um tal fechamento do pensamento não só tolera como incentiva não se deixa contar. Uma delas, de resto, é exactamente aquela, expressa no “Encontro internacional de causas e valores da humanidade” (desculpem repetir-me, mas que título admirável!), de que a sua compreensão deste vasto mundo plana muito acima da da chanceler Angela Merkel.
Freitas do Amaral pertence àquele número de pessoas que, vindas da direita, a pouco e pouco transitaram para a esquerda. Algumas, como Adriano Moreira, vieram da direita autoritária de Salazar. Freitas do Amaral não, e teve até, através da fundação do CDS e da sua participação na primitiva AD, um papel decisivo na legitimação da direita democrática em Portugal. Lamentavelmente, sensivelmente a partir da perda das eleições presidenciais de 1986 para Mário Soares, iniciou-se o processo que o conduziu ao lugar onde hoje se encontra: um lugar de vazio ornamentado de palavras destinadas a manifestar a sua incomum sapiência e a grandiosidade moral das suas concepções políticas.
Uma tal grandiosidade é, de resto, compatível com ideias que, como no caso das caricaturas de Maomé, mostram uma concepção assaz flexível da liberdade. No mencionado encontro (não, não repito mais uma vez o nome completo), Freitas do Amaral, que se declarou crítico do que considera a atitude amorfa, passiva e resignada dos portugueses face ao Governo, declarou a sua prefrerência, em certas situações, pelo voto obrigatório. Votar deixaria de ser, com a flexibilidade que estas coisas exigem, um dever. Mudaria substancialmente de natureza: passaria a ser uma imposição. Ora bem, como classificar esta ideia?
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