Não há desgraças grátis

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 20140818

Numa catástrofe só há más soluções, mas são melhores do que nada. Estas duas ideias, apesar de evidentes, são sempre difíceis de entender precisamente devido à catástrofe. A discussão à volta da recente queda do Grupo Espírito Santo (GES) é típica deste diálogo de surdos, como foram as conversas durante a crise económica. Acusar o Banco de Portugal do descalabro do GES só mostra incompreensão do problema, como antes dizer-se que a política do Governo ou da troika empobreceram Portugal. O GES e o País caíram com a crise. A política apenas serve para depois distribuir a perda pelos vários grupos envolvidos. Naturalmente, ao receberem o seu quinhão, todos se dizem injustiçados, porque acreditavam ficar imunes. Isso é ilusão, porque não há crises grátis.
O paralelo dos dois casos não é fortuito, porque afinal o terramoto é o mesmo. A queda do GES em 2014 é um episódio da terceira fase da via particular que Portugal escolheu para lidar com o colapso mundial de 2008. Podíamos ter feito de outro modo desviando ou adiando o peso. O que nunca poderíamos era evitar os enormes custos do buraco global.
Alguns países, como os EUA, aguentaram o embate em cheio. Sofreram muito, limparam o sistema e recomeçaram a crescer; em 2011 a economia americana recuperou o nível de 2007, anterior à queda. Portugal optou por um caminho diferente. Grande parte da nossa economia também sofreu o embate inicial, com falências, desemprego, perda de rendimentos. Mas certos sectores da sociedade, como o Governo e o GES, preferiram negar o desastre, pedir dispensa, adiar medidas, reclamar direitos adquiridos. Assim, só na segunda fase, a partir de 2011 e com a chegada da troika, se começou um ajustamento a sério, afectando sectores protegidos pelo Estado: funcionários, pensionistas, serviços e afins. Estes fizeram mais barulho do que todos e ainda negam a necessidade dos cortes ou prometem revertê-los. Em 2014, seis anos após o choque e com o ajustamento alegadamente terminado, começa a terceira fase. Então, surpreendentemente, vêm à tona velhos e enormes buracos, escondidos todo este tempo.
A aberração do GES é espantosa. Primeiro por se tratar do mais antigo e central grupo da economia portuguesa, sempre no cume do poder. Depois por ter mantido tantos anos uma fachada triunfante, cobrindo as ruínas. O episódio atingiu já dimensão histórica por, segundo o Financial Times, estar no "topo da tabela dos piores aumentos de capital de sempre na indústria financeira" (5 de Agosto), anulando o investimento em dois meses. Indiscutível é que desabou uma das peças mais imponentes e centrais da economia portuguesa. Não há soluções adequadas. A resposta do Banco de Portugal a 3 de Agosto não é boa pois, entre os escombros, dessas já não há. Barafustar e apontar inconvenientes é repetição óbvia e ociosa. Queixas e críticas são compreensíveis, mas o grupo ruiu; resta resgatar nos destroços os valores recuperáveis. O governador, como lhe competia, salvou a parte central do edifício, o banco. No meio da desgraça, tal sucesso deve contentar-nos, pois a sua queda teria efeitos devastadores em toda a sociedade.. Além disso, envolvendo um Fundo de Resolução, pretendeu, se tudo correr como previsto, não afectar o défice orçamental. Risco há sempre. Desabando uma das peças mais nucleares da economia, toda a sociedade portuguesa sofrerá, e não pouco. Viver por cá e dizer-se alheio exigindo imunidade é não entender o que aconteceu.
Porque ruiu o GES? Por erros graves após a crise global de 2008. Porquê só em 2014? Devido ao caminho escolhido por Portugal para lhe responder. A crise é antiga e dura, mas alguns, afectados como todos, conseguiram defender-se ao longo de todo o ajustamento. Uns às claras, sob o Tribunal Constitucional, outros no silêncio das influências políticas ou de forças económicas. Mas todos os que cá vivemos nos últimos 20 anos somos parte do problema. Cedo ou tarde, esta verdade vem ao de cima. Uma coisa é certa: só quando o sistema estiver limpo recomeça a crescer.

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