Será a violência no Iraque o fim dos 2000 anos de Cristianismo?
Assinado por Ajuda à Igreja que sofre
Data: 15 Agosto 2014
Desde a invasão dos EUA, em 2003, o Iraque tem vivido tempos atribulados. Os atentados têm sido constantes. Todos os dias há mortos a lamentar.
Depois destes tempos difíceis, e sem que ninguém previsse, os Jihadistas islâmicos do ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) entraram no Iraque, tomaram de assalto a cidade de Mossul, ocuparam-na e proclamaram um Estado Islâmico. Este grupo pretende restaurar o califado, abolido em 29 de Julho de 1923, por Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna. O califado ocupa os países do Iraque, Síria, Líbano, Israel, Chipre, Jordânia, Palestina e algumas zonas da Turquia
Estima-se que actualmente haja cerca de 1 milhão de deslocados no Iraque. Devido às guerras e conflitos sectários, a população cristã, que contava em 2003, antes da invasão militar dos EUA, com mais de 1,5 milhões de fiéis, está agora reduzida a menos de 300 mil.
Enquadramento histórico
Numa entrevista dada à Fundação AIS no passado dia 3 de Julho, D. Yousif Mirkis, Arcebispo Caldeu de Kirkuk, afirmou que teme o fim do Cristianismo no Iraque, uma vez que os Cristãos estão em processo de desaparecimento, tal como aconteceu na Turquia, na Arábia Saudita e no Norte de África. Até mesmo no Líbano são agora uma minoria. Se isso acontecer, a ecologia social ficaria desestabilizada. Todas as sociedades necessitam de todos os seus elementos.
Na sua opinião, foi o que aconteceu na Alemanha há oitenta anos: naquela altura um grupo também foi excluído da sociedade. No Iraque, estão a viver um novo 1933. Há muitos paralelismos com a situação da Europa entre as duas guerras. Tal como havia instabilidade na Alemanha antes de 1933, após a sua derrota na Primeira Guerra Mundial, também o mundo Árabe tem vindo a fragmentar-se desde 1967. Nessa altura, os Árabes perderam a Guerra dos Seis Dias contra Israel. As consequências têm sido traumáticas até hoje. Assim, tal como a Primeira Guerra Mundial conduziu à Segunda Guerra Mundial, a derrota de 67 é também a origem da actual crise.
O papel dos Cristãos no Médio Oriente
Os Cristãos são parte de uma sociedade humilhada. Eles trabalharam arduamente e deram a sua contribuição. É o caso do Líbano, da Síria e também do Iraque. É importante saber que não havia guetos cristãos no Iraque. Os Cristãos têm estado presentes em todos os níveis da sociedade. Têm a maior taxa de alfabetização. Antes de 2003, os Cristãos eram apenas 3% da população. E quase 40% dos médicos especialistas existentes eram cristãos. Na área da engenharia a proporção era semelhante. São factos impressionantes. Além disso, também a maior parte dos intelectuais, escritores e jornalistas eram cristãos. Eram pessoas educadas numa orientação ocidental. Os Cristãos eram o motor da modernização do Iraque. As razões são históricas. As Igrejas têm tradicionalmente mantido muitas escolas e hospitais. Além disso, os Cristãos eram sempre pessoas de mente aberta, multilingues e orientados para o Ocidente. Isso explica o elevado grau de escolaridade. Mas, com a emigração permanente é evidente que estão a perder o seu dinamismo.
Aceleração do êxodo nos últimos dez anos
Não é fácil ser cristão no Iraque hoje em dia. Antes de 2003, representavam cerca de 3% da população. Hoje são talvez 1%. A história do Iraque é uma história cíclica. Aproximadamente de dez em dez anos vivenciam um novo problema que leva a que os Cristãos queiram sair. Em 1948, o estado de Israel foi fundado. Foi um acontecimento traumatizante no Médio Oriente. De seguida, o rei iraquiano foi assassinado. Mas, os Cristãos viveram bem na monarquia. Gozavam de liberdade. Depois, o assassino do rei, que se tornou presidente do país, foi também assassinado. E o seu assassino teve o mesmo destino. Houve então a guerra de 1967 contra Israel, a guerra Irão-Iraque e assim por diante. Tudo isso gerou instabilidade e emigração.
Agora, em apenas alguns dias, entre o dia 5 e o dia 10 de Junho, a província de Nínive e a cidade de Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, está nas mãos dos homens do ISIS.
Em resultado dos combates, calcula-se que mais de 500 mil pessoas tenham tentado fugir perante a chegada de rebeldes jihadistas que desejam impor a lei islâmica no país. O grupo islâmico que controla Mossul é uma das mais radicais organizações sunitas e já domina diversas regiões da Síria que está a atravessar uma tenebrosa guerra civil.
O mundo viu, chocado, a fuga, em menos de 48 horas, de quase meio milhão de pessoas. A fuga, apressada, deixou estes milhares de refugiados no mais completo abandono.
Pela primeira vez em dois mil anos Mossul não tem um único cristão. Os cristãos iraquianos tiveram de escolher entre a morte e o exílio após o ultimato do ISIS. Antes de obrigar a escolher entre a conversão imposta, a fuga ou a morte, os extremistas islâmicos marcaram todas as casas dos Cristãos com o símbolo ن , muitas vezes escrito com um círculo, que representa a letra 'N' de Nazara (cristão), e na fachada das casas xiitas a letra 'R' de Rwafidh (protestantes ou aqueles que rejeitam).
Desenvolvimentos recentes
O Patriarca Caldeu da Babilónia e presidente da Conferência Episcopal do Iraque, Louis Raphael Sako, tem estado nas últimas semanas em constante contacto com a Fundação AIS, dando a conhecer a deterioração da situação no Iraque.
No passado dia 10 de Agosto escreveu-nos dizendo: "A morte e a doença estão a arrebatar as crianças e os idosos que se encontram entre os milhares de famílias refugiadas espalhadas pela região do Curdistão, as quais perderam tudo nos recentes desenvolvimentos trágicos, enquanto os combatentes do ISIS avançam e a ajuda humanitária é insuficiente.
Há 70 mil cristãos, juntamente com outras minorias, deslocados em Ankawa, uma cidade com uma população de mais de 25 mil cristãos. As famílias que encontraram abrigo dentro de igrejas e escolas estão relativamente seguras, enquanto as que ainda dormem na rua e nos parques públicos se encontram numa situação deplorável...
Em Dohuk, o número de refugiados cristãos ultrapassa os 60 mil e a sua situação é pior que em Erbil. Há também famílias que encontraram abrigo em Kirkuk e Sulaymaniyah, e outras chegaram até à capital, Bagdade.
Em resumo, esta é a situação das aldeias cristãs em torno de Mossul até à fronteira com a região do Curdistão: as igrejas foram abandonadas e profanadas; cinco bispos estão fora das suas dioceses, os sacerdotes e as religiosas deixaram as suas missões e instituições, deixando tudo para trás, as famílias fugiram com as suas crianças, abandonando tudo! O nível de desastre é extremo."
Como encarar o futuro?
A melhor forma de combater intelectualmente este extremismo é através do diálogo e da cultura. Quanto maior for a cultura de um país menos suscetível é ao fanatismo. D. Yousif Mirkis disse-nos: "A minha esperança é a geração mais jovem. Eu procurei sempre formá-los. Por exemplo, publiquei uma revista cristã não apenas destinada aos adultos mas também às crianças. Nesta revista nós focámos sempre o amor a Deus e ao próximo, e o respeito pelos outros. Cerca de 15% dos meus leitores eram muçulmanos. Eles apreciavam a nossa acção e trabalho. O povo Iraquiano não é naturalmente fanático. Mas, tal como o mundo islâmico, como um todo, foi sequestrado por fanáticos. E agora não podem mover-se, estão como que prisioneiros."
D. Yousif Mirkis explicou ainda que "Nós, Cristãos, estamos em diálogo com a elite muçulmana. Sempre que nos encontramos em conferências, somos como irmãos. Mas o problema é que a própria elite iraquiana tem sido marginalizada. De certa forma, tem ocorrido um massacre dos intelectuais ao longo dos últimos anos. Por exemplo, desde 2013 mais de 180 professores universitários foram mortos em ataques. Uma grande parte dos médicos especialistas deixou o país. Não somos só nós, Cristãos, que temos sido enfraquecidos, mas também a elite Muçulmana. E isso tem consequências desastrosas."
Também D. Shlemon Warduni, Bispo Auxiliar e Administrador Apostólico do Patriarcado dos Caldeus, Bagdade, informou que "tem havido uma convivência fraterna entre Cristãos e Muçulmanos. Os Cristãos têm partilhado muito, especificamente no Leste, desde o princípio do Islão. Partilharam as situações doces e amargas da vida; o sangue cristão e muçulmano tem-se misturado, uma vez que foi derramado na defesa dos seus direitos e das suas terras. Juntos, construíram uma civilização, cidades e uma herança. É verdadeiramente injusto rejeitar agora os Cristãos e atirá-los para fora, considerando-os sem valor."
Diz-nos ainda que, na sua opinião, "O futuro dos Cristãos no Iraque e, direi mesmo, em todo o Médio Oriente, é muito obscuro e pode dizer-se que existe um plano para o esvaziar de Cristãos (...) Podemos dizer que a situação não é boa. Em alguns casos é dramática. É o que acontece na Síria, no Iraque, no Egipto. Não é fácil."
Assim, podemos dizer que os Cristãos não são a chave para o processo de paz na região, mas têm um papel a desempenhar, como o fermento na massa. O fermento na massa não é muito, mas pode fazer aumentar a massa. É preciso que tenham vontade de o fazer. É preciso que os Cristãos não tenham medo e que não abandonem a região.
É o Sínodo para o Médio Oriente, que se realizou em 2010, que nos ensina que é absolutamente necessário trabalhar em conjunto com o Islão. Na Exortação Apostólica do Sínodo, o Papa Bento XVI afirmou que, obviamente, é necessário desenvolver um trabalho ecuménico. Mas antes de dialogar com o Islão é necessário dialogar e trabalhar entre os Cristãos: Ortodoxos, Católicos e Protestantes.
Os movimentos fundamentalistas são movimentos minoritários. A maioria dos Muçulmanos são pessoas pobres como os Cristãos. Prova disso é que quando existem problemas numa aldeia muçulmana, os refugiados muçulmanos vão esconder-se nas aldeias cristãs vizinhas e vice-versa, os Cristãos vão encontrar refúgio e acolhimento em casa dos Muçulmanos. Portanto, existe este bom entendimento histórico. A doutrina social da Igreja, isto é, os problemas sociais de qualquer sociedade, a injustiça, o analfabetismo, a desigualdade, a falta de liberdade e de emprego, a pobreza, são problemas de todos, não dizem respeito apenas aos Cristãos, dizem respeito tanto aos Muçulmanos como aos Cristãos. Então, ao desenvolver esta doutrina social da Igreja, cria-se um terreno de trabalho comum com o Islão.
Iniciativas da Fundação AIS
No passado dia 6 de Agosto, a Fundação AIS, respondendo ao pedido do Papa Francisco e do Patriarca Louis Raphael Sako, convocou um dia de oração pela paz e reconciliação no Iraque. Neste dia todos os secretariados da AIS, benfeitores e amigos uniram-se em oração à Igreja do Iraque pela causa deste povo.
Neste âmbito também foi criada uma página na Internet, com o endereço www.wearechristians.info, onde todos são convidados a dar também a face pelos Cristãos iraquianos. Publicando a sua própria fotografia, todos podem participar demonstrando a sua solidariedade para com os seus irmãos na fé.
No dia 12 de Agosto, uma delegação da Fundação AIS viajou para Erbil, no Norte do Iraque, como sinal de proximidade e solidariedade para com os numerosos cristãos que fugiram dos jihadistas do ISIS após os ataques recentes em Qaraqosh - a capital cristã do Iraque - e na planície de Nínive. A delegação é constituída pelo presidente executivo internacional, Johannes von Heereman, a directora de projectos, Regina Lynch e a directora adjunta de comunicação, Maria Lozano.
Esta viagem da delegação da Fundação AIS será uma ocasião para testemunhar a situação actual dos Cristãos iraquianos, perceber melhor quais as necessidades reais dos milhares de refugiados e como está a ser aplicada a ajuda que foi enviada no início de Julho (100.000€).
Recentemente, a Fundação AIS destinou mais 130.000 € (em Agosto) para ajuda de emergência essencial para os responsáveis da Igreja nestes locais poderem fornecer alimentos, roupa, água potável e medicamentos para milhares de cristãos que foram expulsos de suas terras e que viram todos os seus bens serem confiscados pelos jihadistas do ISIS.
Conclusão
Como nos disse o Papa Francisco "Não se faz a guerra em nome de Deus", por isso é necessário que todos os líderes mundiais, religiosos e políticos denunciem, condenem e ajudem a pôr fim às práticas bárbaras que se têm cometido em nome da religião.
O Patriarca Sako numa carta aberta ao Papa Francisco, a 5 de Agosto, apela a "(...) uma operação administrativa de grande envergadura e à escala internacional. Quanto aos Cristãos do Iraque, (...) têm a necessidade urgente de ajuda humanitária, como também de protecção eficiente, verdadeira e permanente que lhes assegure que não há limite para a sua existência, cujas origens estão tão profundamente enraizadas no Iraque."
O Papa Francisco pede-nos "Não nos resignemos a pensar no Médio Oriente sem os Cristãos", manifestando "grande preocupação" pela situação dos fiéis naquela zona. As comunidades cristãs, presentes no Iraque, Síria, Irão e Egipto desde o início da Cristandade, estão em risco de desaparecer, fugindo e exilando-se devido à perseguição religiosa e à guerra.
Se nada for feito, num futuro próximo a presença cristã será ínfima e simbólica. O Iraque, a região onde surgiram as religiões monoteístas, terá perdido o seu património espiritual, histórico e cultural.
Ajuda à Igreja que Sofre
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