Memórias de Verão

Inês Teotónio Pereira | ionline 2014.08.23
Durante um mês experimentávamos outra vida, outras rotinas e tínhamos outros amigos
Nunca fui ao Algarve passar férias. Nem sei como é. As minhas praias das férias grandes, as de Agosto, têm de ter água fria, ondas grandes, cheiro a limos e a algas, pocinhas nas rochas quando a maré está vazia, muito iodo e o tempo é sempre uma incerteza. São praias em que o mar vira quando muda a lua e em que a cor da bandeira quer mesmo dizer qualquer coisa. Praias em que os nadadores salvadores treinam para super-heróis porque todos os Verões salvam mesmo alguém. Praias onde os toldos têm como utilidade principal proteger da cacimba ou da nortada e não do sol que prefere ir passar férias ao Algarve.
Cresci assim. A jogar ao prego debaixo do toldo, a ir ao mar por diversão e como prova de valentia e não por estar com calor, em que só se punha fim aos banhos de mar quando se tinha a boca roxa, as extremidades do corpo anestesiadas e o fato de banho cheio de areia como prova de que tínhamos sobrevivido estoicamente à arrebentação. Cresci a ir para a praia de manhã para cumprir uma rotina, e porque era mais saudável, com a esperança de que o céu "abrisse" à hora de almoço e o sol desse um ar da sua graça. Nas minhas férias grandes as amizades que criei tinham como critério as crianças da minha idade que tinham os toldos ao lado do meu e uns pais que também achavam mais importante o "ar de mar" e o iodo que o calor ou o mar chão e quente.
Crescemos todos assim, em modo tribal. Donos e senhores das nossas praias, com gíria, hábitos e rotinas próprios e com mais iodo acumulado no corpo que escaldões. Nas minhas férias grandes a praia era um cenário, não era um fim. A praia servia para brincar, cimentar amizades durante um mês inteiro, ir às poças procurar qualquer coisa que mexesse e que se conseguisse apanhar para pôr no balde e para os nossos pais nos soltarem e descansarem de nós.
Durante um mês experimentávamos outra vida, outras rotinas e tínhamos outros amigos. Só precisávamos dos pais para nos pagarem o bolo ou o gelado dia sim dia não. Éramos livres por 30 dias. A cacimba, a nortada e a água gelada eram pormenores que não interferiam na nossa felicidade. O que importava era a liberdade de andar em bando na praia ou fora dela sem horas para refeições e imunes às combinações. Todos os dias o cenário era o mesmo e a praia ia muito para além da areia e do mar. O cenário era toda uma vila por onde se andava a pé ou de bicicleta e onde se chocava em cada esquina com alguém que nos conhecia desde que nascemos. Todos os anos havia as mesmas festas, os mesmos jogos, as mesmas pessoas, os mesmos cafés, os mesmos baloiços e as pocinhas nas rochas nunca mudaram de sítio.
Nunca soube o que era ir passar férias para a praia exclusivamente para apanhar sol. Na minha perspectiva o sol era um bónus nas férias. Nas férias fugíamos no calor da cidade - íamos ser livres e soltos para o fresquinho da beira-mar e para sítios que faziam com que os dentes dos bebés crescessem mais depressa.
Apesar de os tempos terem mudado, de o Algarve ser um destino de férias de gabarito mundial e de serem cada vez mais escassos os períodos de férias que os pais conseguem ter com os filhos, as minhas férias grandes não mudaram. Com mais ou menos semanas mantenho estas rotinas com os meus filhos. Também eles não sabem o que é passar férias no Algarve e também eles dominam o jogo do prego e o enrola na arrebentação quando a bandeira está amarela. Eles sabem que à hora de almoço o céu abre e que o mar vira quando a lua muda.
As poucas coisas que conseguimos dar aos nossos filhos são memórias. E as memórias das férias grandes, das pocinhas das rochas que nunca mudam de sítio, são uma linha inquebrável entre nós e eles.

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