Maria Luís não foi para Bruxelas. Nunca poderia ir


Maria João Avillez
Observador 3/8/2014

Com ou sem troika, com ou sem os brutos milhões do BES, com ou sem a voracidade do Tribunal Constitucional, com maior ou menor desemprego, em nenhuma circunstância Maria Luis seria "substituível".
Não tenho informação "de dentro", não ouvi segredos, não recolhi desabafos. E estou fora e longe. Foi até talvez a lonjura – primeiro na distante Turquia, depois na mais doméstica Foz do Arelho – que me obrigou a ir utilizando a cabeça, a observação, algum conhecimento dos personagens, para conseguir jogar comigo mesma o jogo de xadrez político em que me entretive nas últimas semanas. Felizmente há testemunhas que me viram jogá-lo, mas mesmo que não houvesse, a minha certeza de que Maria Luís nunca seria a nossa comissária em Bruxelas foi sempre irrevogável (o adjetivo é perigoso eu sei, mas ele há irrevogáveis e irrevogáveis).
Não foi preciso praticar dotes de adivinhação, bastou-me simplesmente não ser esquizofrénica. É que a esquizofrenia vigente (lamento não encontrar termo menos indigesto) traduzida no atacar, vilipendiar, insultar, arrasar o governo, de manhã à noite, todos os dias, a todas as horas, em todos os canais e diante de todos os microfones, com ou sem razão, com ou sem verdade, com ou sem boa fé, impede o bom uso da racionalidade, ingrediente que a política não costuma dispensar.
A racionalidade, condição indispensável para a justa medida. O oposto do que sucede. Somos submergidos por uma antiga (já vem de 2011) onda de bota abaixo tão permanente, excessiva e acrítica que impede qualquer julgamento sereno, debate sério, balanço sustentado e eis seguramente um dos piores erros da oposição socialista: deixar-se ir na onda, cavalgando-a com uma irresponsabilidade embaraçante. E assim vetando-se a si mesma a regra mais séria de qualquer oposição que se respeite: criticar com fundamento para sugerir alternativas com seriedade. Com verosimilhança económica e rigor político, se possível.
Ora em cima deste vazio ruidoso, vir eu agora sugerir que se "repare" no comportamento dos governantes, que se atenda ao que dizem – sobretudo ao que não dizem –, que se analisem as suas escolhas em vez de as atirar instantaneamente para o lixo depois de ir ouvir o Bloco de Esquerda, é pedir de mais. É um pecado: é ser "passista", anti-nacional, louvar a austeridade, dar importância à divida, detestar os pobres, ser indiferente ao desemprego, praticar o neo-liberalismo (o neo quê?), gostar "desta gente" em vez de adorar António Costa.
Sucede porém que se alguém se tivesse permitido um pequeno intervalo neste extenuante massacre para "reparar" na idiossincrasia do chefe do governo e olhando para aquilo a que Passos tem atribuído importância nos últimos três anos, não teria gasto o seu latim com "Maria Luís Albuquerque – Comissária". Nem latim, nem retórica, nem papel, nem som, nem imagem , para se entreter com algo que nunca poderia acontecer: lá está, a onda afogou a simples a lógica deste caso.
A determinação do primeiro-ministro, o seu uso da decisão solitária, a prudência fria com que gosta de agir, o fastio para mudanças, o seu horror a brincar em serviço ou a recusa de escolhas impostas ou "sugeridas", sobretudo se colidem com aquilo que bem ou mal tem sido a sua linha de rumo, deviam ter habilitado observadores e comentadores a saber a quantas andam. Nunca, julgo eu, Pedro Passos Coelho arriscaria chutar a sua ministra das Finanças para fora do Terreiro do Paço e nem vale a pena sublinhar a delicadeza deste momento nacional. Com ou sem troika, com ou sem os brutos milhões do BES, com ou sem a voracidade do Tribunal Constitucional, com maior ou menor desemprego, em nenhuma circunstância Maria Luís seria "substituível". Era só saber "reparar".
O barrete enfiado por quem, com invejável à-vontade, sustentou semanas a fio a certeza da troca de pele da ministra pela de comissária europeia, entretém-se agora em pequenas e médias "intrigas": Passos não teria conseguido não sei o quê de Junker; tirou Moedas da cartola na 25ª hora; a falta de poder negocial de Passos Coelho na UE levou-o a vergar-se a Juncker; Moedas não é senão uma segunda escolha, etc., etc.
Foi o contrário: era Juncker quem queria Maria Luís – que conhece bem e estima muito – e Moedas é de primeira. E é tão visível que o é que nem valerá a pena abundar muito sobre isso.
Em política, é isto: por vezes, muitas vezes, quase sempre, as coisas são mais simples. E já agora também me parece que a ministra das Finanças não quereria mudar-se para a Bélgica. Senão como conseguiria ela gerir, a partir da máquina de Bruxelas, a sua ambição política e o seu sonho de voar mais alto?
Se querem que lhes diga, acho até – permanecendo Vítor Gaspar um OVNI – que estamos diante dos dois casos políticos mais interessantes desta era. Na vitória ou na derrota havemos de continuar a ouvir falar de uma, Maria Luís Albuquerque, e do outro, Passos Coelho.

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