Há cem anos, quando as luzes se apagaram

JOÃO CARLOS ESPADA Público 04/08/2014 - 00:27
Em vez de procurar os países "culpados" pela I Guerra, devemos recordar as ideias políticas que a propiciaram.
Hoje à noite, na Abadia de Westminster, será celebrado um serviço religioso em memória de todos os que caíram na I Guerra Mundial. Pelas 22h, as luzes da abadia serão apagadas uma após outra, até restar apenas um ténue candeeiro a petróleo, junto da campa do Soldado Desconhecido.
Às 23h — cem anos depois de o Reino Unido ter declarado guerra à Alemanha, por esta ter invadido a Bélgica — também essa luz será apagada. O mesmo acontecerá em vários edifícios públicos, incluindo o Parlamento. Todos os cidadãos britânicos são convidados a seguir um procedimento semelhante nas suas casas.
Escrevendo no Telegraph de sábado passado, Charles Moore (biógrafo de Margaret Thatcher e antigo director daquele jornal) recordou que o Reino Unido é o único país europeu "que esteve no lado certo nas duas guerras mundiais, que lhes sobreviveu sem ser conquistado, e que mantém, sem rupturas, o mesmo sistema constitucional que existia antes dessas guerras". Apesar disso, ou por isso mesmo, ele considera totalmente apropriada a forma discreta e inclusiva com que o seu país vai assinalar o centenário da I Guerra Mundial.
Julgo que tem razão. Em vez de procurar os países "culpados" pela I Guerra, devemos recordar as ideias políticas que propiciaram os comportamentos que conduziram à guerra.
Basicamente, essas ideias exprimiam uma reacção contra a atmosfera moral e cultural que presidira aos cem anos de paz e crescimento económico ocorridos entre o fim das guerras napoleónicas (1815) e o início da I Guerra (1914) — um período por vezes designado por Pax Britannica.
Podemos agrupar essas ideias reaccionárias/revolucionárias em três categorias principais: (1) o proteccionismo nacionalista; (2) a ideologia da luta de classes; (3) o niilismo anticristão. Friedrich List (1789-1846), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) foram os autores, entre muitos outros, que mais se celebrizaram na defesa dessas ideias.
List, de longe o mais moderado, publicou em 1841 um best-seller europeu que deu pelo nome de O Sistema Nacional de Economia Política. Aí criticou aquilo que designou por "a escola", referindo-se ao ideário do comércio livre e do governo imparcial, limitado pela lei, que tinha sido defendido por Adam Smith em A Riqueza das Nações (1776). Em alternativa, defendeu que os governos nacionais deviam proteger e incentivar sectores económicos específicos, promovendo uma espécie de "guerra económica" pela supremacia nacional. Ainda que não intencionalmente, as ideias de List promoveram o proteccionismo nacionalista na Europa, onde antes tinha sido dominante a prática do comércio livre.
As ideias de Karl Marx são conhecidas, embora o seu alcance permaneça mal compreendido. Basicamente, Marx desencadeou um ataque fulminante contra o Estado de direito e o sistema parlamentar, acusando-os de servir uma classe economicamente dominante. Segundo ele, os princípios da igualdade perante a lei, da separação de poderes e do governo que responde ao Parlamento eram pura hipocrisia. No seu lugar, colocou a crua guerra pelo poder nu, absoluto e arbitrário, sem limites legais, em nome dos interesses dos pobres, liderados pelo proletariado e pelo seu partido de vanguarda, o partido comunista.
Nietzsche foi, a meus olhos, o mais desagradável. Onde Marx e, em grau menor, List tinham instalado o relativismo dos meios ao serviço de fins considerados "bons", Nietzsche instalou o relativismo absoluto — de meios e de fins. Denunciando o "moralismo inglês de lojistas e comerciantes", pregou uma nova "moralidade", que devia estar "para além do bem e do mal": a chamada "vontade de poder". O alvo central dos seus ataques foi a mensagem moral cristã — que ao longo dos séculos permitira à civilização europeia conter o arbítrio da vontade sem entraves, sob o imperativo moral do sentido de dever, fundado na lei natural, a lei de Deus.
As ideias de List, Marx e Nietzsche anunciavam um mundo novo, liberto dos preconceitos antiquados da "velha Europa" — preconceitos que tinham sido subscritos por antiquados autores europeus, como Aristóteles, Tomás de Aquino, John Locke, Montesquieu, Adam Smith, Edmund Burke, Immanuel Kant ou Alexis de Tocqueville.
Na noite de 4 de Agosto de 1914, um gentleman antiquado intuiu os efeitos catastróficos que adviriam da "libertação" desses velhos preconceitos europeus. Chamava-se (Sir) Edward Grey, era ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e terá dito: "The lamps are going out all over Europe; we shall not see them lit again in our life."

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António