O terror


João Pedro Marques | ionline | 2014.08.26
A situação que se vive hoje no Iraque e na Síria não é culpa do Ocidente e tem precedentes históricos na região
Todos os dias nos chegam notícias arrepiantes sobre as acções do autodenominado Estado Islâmico na Síria e no Iraque: crucificações, raptos, violações em massa, decapitações, enterramentos de gente viva. Todas essas abominações dignas do pior pesadelo são praticadas no quadro de uma jihad (guerra santa) lançada por muçulmanos sunitas fanáticos, que usam o terror espectacular como forma de infundir um medo paralisador nos adversários e de os sujeitar à sua autoridade. O seu objectivo final é reconstituir o califado na sua maior extensão histórica, ou seja, dos Pirenéus ao Norte da Índia.
Na busca de uma explicação para a emergência desta inacreditável barbárie, vai-se difundindo entre nós uma teoria segundo a qual o que está a acontecer é culpa do Ocidente, em especial dos americanos. Diz-se nessa teoria que, se não tivesse havido as intervenções militares no Iraque e no Afeganistão, nada disto teria acontecido. Mas trata-se de uma visão demasiado superficial para ser útil. É verdade que o Ocidente foi muitas vezes inábil, descuidado, soberbo, manipulador, maquiavélico, na forma como lidou (e lida) com os barris de pólvora do Médio Oriente, mas a culpa dos horrorosos acontecimentos que referi acima é exclusivamente do Estado Islâmico. Todavia, se a sua actividade sádica e perversa não é um efeito colateral dos maus passos americanos, isso não significa que seja inexplicável. Na verdade, não caiu das nuvens, pois o terror como forma de conquista e governo dos povos tem uma longuíssima tradição naquela zona do mundo, e é para essa tradição que a actuação do Estado Islâmico directa ou indirectamente remete.
Das dezenas de exemplos que permitiriam ilustrar o que afirmo, julgo que o mais esclarecedor será o de Tamerlão, um homem nascido perto de Samarcanda, no actual Usbequistão, e que se tornou tristemente famoso pela sua acção na parte final do século xiv — para nos situarmos melhor foi, portanto, um contemporâneo de D. João, mestre de Avis. Ora esse homem que, no início do seu percurso político, apenas governava uma pequena cidade, acabou por dominar um enorme espaço que ia de Deli à Ucrânia e à Síria e que prometia continuar a expandir-se, pois as suas tropas já avançavam sobre a China quando, felizmente, morreu. Todo esse domínio foi conseguido utilizando o terror: milhares de cabeças cortadas em Isfahan (no Irão), Bagdade e muitas outras cidades – onde erigiu grandes torres com esses troféus de guerra –, raptos de mulheres em grande escala, violações frequentes e brutais, à vista de todos, gente atirada para precipícios nas regiões montanhosas, crianças espezinhadas pela cavalaria – como aconteceu em Alepo –, milhares de cristãos enterrados vivos na Arménia. A lista de atrocidades é enorme.
Tamerlão era um muçulmano sunita e soube pôr a religião e o fanatismo religioso ao seu serviço. Quase todos os anos ele e os seus homens partiam em guerra santa contra infiéis, hereges e apóstatas, o que, como agora acontece com o Estado Islâmico, incluía cristãos, xiitas e todos os outros muçulmanos que não se sujeitassem ao seu poder. O terror como método de conquista e de paralisia da oposição permitiu-lhe avançar muito depressa no terreno. Importa dizer que Tamerlão fez as suas grandes conquistas em pouco mais de 20 anos, o que é assinalável, tendo em conta os meios técnicos em finais do século xiv.
Ora o que aflora hoje em dia na Síria e no Iraque é uma nova espécie de Tamerlão. É claro que existem muitas diferenças históricas entre uma situação e outra, mas a meu ver o paralelismo que aqui sugiro é válido e há toda a razão para estarmos atentos e preocupados. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, afirmou recentemente que o Estado Islâmico não tinha lugar no século xxi e comparou-o com um cancro. Tem toda a razão: esta nova entidade política que emergiu na Síria e no Iraque, e que se apoia no fanatismo e no terror, remete, em termos ideológicos e comportamentais, para um tempo passado que, se não for rapidamente parado, se espalhará como uma doença invasiva e constituirá um perigo mortal para todos.  
João Pedro Marques
Historiador e romancista

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