Mais uma reforma que não vamos fazer

Rui Ramos | OBSERVADOR | 20/8/2014

As reformas são o contrário do imobilismo e o contrário da revolução. Não têm de ser só um só tipo de solução. Nunca serão perfeitas nem unânimes. Mas são o único meio de evitar rupturas e derrocadas
No passado fim de semana, a nossa oligarquia, a quem nunca faltou engenho e arte, resolveu um dos mais complexos problemas da gramática política portuguesa: como não conjugar o verbo reformar na primeira pessoa do presente do indicativo. É sabido que a pressão para usar esse verbo se agravou nos últimos anos. Não é possível percorrer um relatório da OCDE ou um estudo da Comissão Europeia sem apanhar com conselhos veementes sobre as reformas em Portugal. Do mercado de trabalho à Segurança Social, por causa da competitividade ou por causa da demografia, é preciso reformar, reformar mais, reformar sempre.
Imagino os nervos dos nossos oligarcas. Reformar é confrontar hábitos e expectativas. Ora, nunca é fácil arranjar razões contra a rotina e o estabelecido: se é para fundar uma estrutura nova, parece "ideológico"; se é para poupar dinheiro, parece "socialmente insensível". Pior: as reformas tendem a mobilizar sobretudo, pela negativa, os interesses ofendidos. E pior ainda: requerem compromissos parlamentares, que nenhum partido encara sem muitos cálculos eleitorais. Mas por outro lado, renegar o reformismo, como fazem o PCP e o BE, sugere irresponsabilidade ou inconsciência. Como resolver isto?
Foi o Tribunal Constitucional, no caso da Contribuição de Sustentabilidade da Segurança Social, quem ajudou a encontrar a solução. Os juízes, reparem bem, não disseram que não se deve reformar. Muito pelo contrário. Mais do que ninguém e acima de tudo, eles anseiam por reformas. Mas reformas "sistémicas", verdadeiramente profundas, realmente totais, históricas, absolutas, definitivas, unânimes. Para os nosso magistrados, o verbo reformar só pode ser conjugado numa espécie de mais-que-perfeito. Sem isso, não é admissível. Reformas comezinhas, para equilibrar as contas, isso nunca.
Perante esta lição, o primeiro ministro terá reflectido. Na passada sexta-feira, anunciou: não fará mais nenhuma proposta de reforma da Segurança Social. Como? Passos Coelho repudia o reformismo? De modo nenhum. Passos deseja, mais do que todos e para além de tudo, fazer reformas. Mas só com o Partido Socialista. Sem os socialistas, não. Reformas para serem chumbadas pelo Tribunal Constitucional ou para o acusarem de "coveiro do Estado social", basta, acabou. A partir de agora, nunca mais "eu reformo"; a partir de agora, é "nós reformamos", ou então ninguém reforma nada.
Como seria de esperar, nenhum dos candidatos do PS se ofereceu para reformar com Passos Coelho. Porque detestam as reformas? Também não. Ninguém, aliás, é mais reformista do que o partido que Seguro dirige e Costa pretende dirigir. Tanto assim, que a razão que Costa deu para não dar a mão a Passos no caso da Segurança Social foi esta: o PS, quando no governo, já fez todas as reformas necessárias. O que não quer dizer, porém, que não haja coisas para mudar. Há — e imensas. Mas não em Portugal. Na Europa. É na Europa que Seguro e Costa querem novas estruturas e novos procedimentos. São os alemães, os finlandeses, os holandeses e outras gentes nórdicas que têm de fazer reformas – para que mais dinheiro deles chegue até aos nossos bolsos. Ou seja, os líderes socialistas só admitem conjugar o verbo reformar no tempo pretérito ("nós reformámos") ou na terceira pessoa ("eles, os europeus do norte, que reformem").
E eis como, num país que precisa de reformas e em que quase toda a gente é reformista, não há reformas. E isso não nos deve deixar tranquilos. Falar de reformas é falar de duas coisas: da conveniência de nos prepararmos para explorar a economia global, de modo a prosperarmos sem desequilíbrios recorrentes, e da urgência de ultrapassarmos o modelo da pirâmide de Ponzi nos compromissos entre o Estado e os cidadãos. As reformas são o contrário do imobilismo, mas também o contrário da revolução. Não têm de consistir neste ou naquele tipo de solução — há, como o mundo mostra, mais do que uma maneira de ser competitivo e sustentável. Nunca serão perfeitas nem unânimes. Mas são o único meio de evitarmos rupturas e derrocadas. É que não fazer reformas, hoje, já não é, como antigamente, deixar tudo como está; não fazer reformas, hoje, é apenas garantir o fim trágico de tudo o que está.

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