Maléfica e os abutres

JOAO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.08.11

Os estúdios Disney acabam de apresentar uma inversão do clássico infantil A Bela Adormecida (1697) de Charles Perrault. O vilão do filme Maleficent de Robert Stromberg (Maio 2014) é o rei, pai da princesa, passando a bruxa má a vítima benevolente. Transposição semelhante acontece na falência argentina de 30 de Julho.
A imprensa financeira gosta de contos de fadas com heróis (poucos), vilões (muitos e terríveis) e vítimas (nós). Aqui a Presidente Cristina Kirchner, como a fada Maléfica, surge como alvo de traição por "fundos-abutre", que conseguiram num tribunal de Nova Iorque bloquear o pagamento, arruinando o país. Afinal tudo encaixa no enredo habitual: abuso típico de ricaços americanos sobre pobres contribuintes argentinos. Na verdade, para lá do romance mediático, a questão é importante, complexa e sem inocentes.
Tudo começa com um infractor recorrente, a Argentina, a quem já ninguém empresta. Foi para convencer os relutantes credores que o país recorreu à praça americana, emitindo dívida sob as sólidas regras dos EUA. Por isso é que o conto inclui o inesperado tribunal de Nova Iorque. Depois, apesar das garantias, nova falência: o tema do julgamento de 2014 são os títulos repudiados em 2001, no anterior incumprimento.
Na altura a Argentina impôs cortes de 65% aos credores. Aceitando a proposta, os detentores de títulos criaram um precedente poderoso, invocado desde então por outros países endividados. Mas há aí uma ilusão, pois a suposta vitória dos faltosos dentro das sólidas leis americanas apenas tornaria proibitivas futuras emissões.
Agora até esse êxito aparente azedou. Fundos especulativos, que tinham comprado a desconto os títulos a credores espavoridos, recorreram e o tribunal americano aplicou a letra do contrato. Se a Argentina paga a uns, tem de pagar a todos nas respectivas condições: o país só pode reembolsar os 35% aos credores que aceitaram o corte se entregar 100% aos fundos. Assim o país voltou a falir nos títulos já falidos.
Este embate de vilões domina a discussão, definindo os termos da finança internacional. Mas o centro da história, como no conto clássico, deve ser a princesa, não a má da versão Disney.
Rica e sofisticada no fim de oitocentos, a Argentina regrediu claramente ao longo do século XX. Em 1913 o nível de vida argentino era mais do triplo de português, e acima de economias como a França, Alemanha e Suécia. Cem anos depois, o nosso produto por pessoa está quase 30% acima do argentino em paridade de poder de compra e mais de 70% em taxas de câmbio. Assim é uma excelente candidata a jovem enfeitiçada.
O sono tornou-a o protótipo mundial de mau pagador recursivo. Das oito vezes que faliu na dívida pública externa (1827, 1890, 1951, 1956, 1982, 1989, 2001 e no mês passado), seis são desde a II Guerra Mundial. Portugal teve sete falências, mas a última há mais de 120 anos. Aliás, esse episódio foi precipitado precisamente por um fiasco argentino. A célebre "crise Barings" de 1890, colapso semelhante ao de 2008 à volta do banco Lehman Brothers, começou porque o Baring Brothers de Londres estava muito envolvido em dívida argentina, a qual faliu por uma revolução. No consequente encerramento de mercados, a endividada coroa portuguesa, aliás cliente habitual do acidentado Barings, entrou em incumprimento, arrastando a maior crise financeira da nossa história.
Bela mas adormecida, a Argentina é um paradoxo socioeconómico, combinando níveis do melhor do mundo, no âmbito cultural, artístico e científico, com problemas de país remediado, senão miserável. Podemos dizer que os disparates derrotistas que a elite portuguesa gosta de emitir acerca do destino nacional são verdade, não cá, mas no Cone Sul da América. Temos um pais com problemas, mas o conto de fadas dramático é nas pampas, onde os nossos analistas de café acertariam no diagnóstico depressivo. A infeliz Argentina pode ser considerado o único país secularmente em "vias de subdesenvolvimento". A culpa é, não dos abutres, mas de sucessivas Maléficas.

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