Na vida só há protagonistas

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.08.04

Cada pessoa é um mistério, um abismo, uma totalidade. Os antigos caracterizavam-no tomando o ser humano com um "microcosmos": todo o universo cabe numa pessoa. Esta é uma das verdades mais óbvias, seguras e influentes da humanidade, que no entanto a nossa cultura pretende negar.
O tempo actual tem várias características inovadoras; uma das mais relevante é viver mergulhado em ficção. Em todas as épocas e culturas, a sociedade sempre se elevou e distraiu através de arte, teatro, literatura, poesia. Hoje, o divertimento entrou em overdose, passando de remédio a vício. Através da internet, da televisão, dos jornais, das revistas e, menos, dos livros, o ser humano contemporâneo passa grande parte do seu dia, não na vida própria mas na alheia, frequentemente fictícia, por vezes impossível. Muita gente vive menos tempo em família do que na Guerra dos Tronos, no World of Warcraft ou no The Huffington Post. Esta embriaguez de ilusão tem vários efeitos, positivos ou negativos, mas um dos mais influentes é dar vida à figura mais mítica e irreal que se possa imaginar: o figurante.
Na generalidade das histórias e dos enredos modernos, a narrativa é feita a partir de um herói ou de um punhado de figuras centrais, rodeados por entidades secundárias e silenciosas. Comparando a Divina Comédia de Dante, as crónicas de Fernão Lopes ou as peças de Gil Vicente com os romances actuais, vê-se a radical diferença estrutural onde, da generalização de protagonistas, se passou à banalização dos figurantes. Também a ênfase actual na ciência, na técnica e na economia, até na arte e no desporto é predestinada a separar protagonistas e figurantes. Antes, a excelência máxima era o santo, figura igualitária por natureza; hoje, o centro está no génio, essencialmente elitista.
Isto constitui uma terrível simplificação pois cada um é um mistério, um abismo, uma totalidade; não apenas as principais, mas todas as personagens. Adoptando assim um ponto de vista particular, cada enredo moderno constitui uma dramática redução da realidade. Pior, mergulhados em ficção, muitos hoje trazem-na para a sua vida real, esquecendo que na existência só há protagonistas. Assim, num tempo que se pretende igualitário e autónomo, este preconceito subtil distorce fatalmente a sociedade.
O vício não é novo. O ser humano, que sempre se considerou um abismo, tem tendência a tomar os outros como superficiais, simplistas, manequins. A Antiguidade chegou a institucionalizar a clivagem fundamental em castas e servidões. O escravo, por definição, é apenas figurante, nunca protagonista. Também os cultos esotéricos dos antigos mistérios, de onde nasceram as modernas maçonarias e os movimentos gnósticos, formalizam a distinção entre iniciados e outros.
A revolução, também aqui, surgiu com Jesus Cristo, numa das suas maiores influências sociais. Ao dizer "sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes" (Mt 25, 40), Jesus consagrou um mundo de protagonistas. O Evangelho é um livro em que à volta da figura transcendente todos se assumem como centrais. No Novo Testamento não há figurantes. Os séculos seguintes, impregnados por esta visão subversiva, afirmaram a radical igualdade humana. A literatura e a arte medievais, em geral anónimas e comunitárias, não exaltavam figuras particulares porque todos eram protagonistas. A diferença é subtil, porque a sociedade era estratificada; no entanto, todos sabiam ter a dignidade de filhos de Deus.
A ruptura veio na Modernidade. Apesar de afirmar os direitos político-sociais, ela abandonou a pouco e pouco o axioma antropológico. O princípio da igualdade é abertamente afirmado, mas, individualista ou colectivista, perdeu o fundamento transcendente. Hoje, os livros policiais e os romances de aventuras repetem a linha da Ilíada e da Odisseia, obras classistas onde a cada passo se sublinha a radical diferença entre o talento e a plebe, algo ausente dos Autos das Barcas.
Proclamar direitos humanos não chega. Só amando o próximo como a si mesmo se entende que a vida tem apenas protagonistas.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António