Hipocrisias censurarias

Saragoça da Mata, ionline, 2014.08.01
Cumprir a lei é uma questão de hábito, de escrúpulo, de ordem e de profissionalismo no exercício das funções confiadas. De todos. E nisso, bem... nisso Portugal é o que é!

Quando há mais de 20 anos iniciei a carreira, confrontei-me com a material impossibilidade de conseguir a citação do réu num processo judicial. Porfiadas demandas junto da Secretaria do Tribunal não lograram ultrapassar o obstáculo, mas permitiram saber à boca fechada: o réu teria - alegadamente (com este exconjuramento sacramental está alijada a responsabilidade) - algumas "amizades" na força encarregue da notificação. Era o que bastava.
Vinte anos volvidos, numa reunião esta semana, foi-me confessado por um cidadão que por hábito se furta às citações... precisamente porque a situação é a mesma, na mesma comarca. Os "amigos" que ajudam a fugir às citações, serão outros... mas iguais aos de há 20 anos.
Também é habitual ouvir dizer-se que o pagamento de multas de trânsito não é uma obrigação geral para todos os motoristas. Uns quantos dizem que se furtam ao castigo convocando a proverbial cunha lusitana. Outros tantos bastam-se por impugnar judicialmente o acto e aguardar pacientemente o simples decurso do tempo: ainda e sempre a prescrição, que nos casos mediáticos tanto escandaliza os que nos seus casos pessoais dela se aproveitam.
São também do nosso imaginário histórias de agentes formais de controle que, perante a constatação de um ilícito, preferem aparelhar as mãos atrás das costas e "assobiar para o ar". Não será por acaso que "assobiar para o lado" é uma expressão idiomática consagrada, tal como há séculos o está a expressão "dar às de Vila-Diogo" - algo quererá dizer sobre Portugal. E isso tanto se aplica ao pequeno furto, ao pequeno tráfico de estupefacientes, ao pequeno lenocínio, como a ilícitos de monta particularmente maior, como todos sabemos mas preferimos aqui não exemplificar.
Ora, nenhum dos casos referidos é uma daquelas situações, raras como desejamos, em que é o próprio agente da autoridade a idealizar, participar e lucrar com o ilícito, como seu autor ou participante principal. São casos de relaxe e incompetência. Ou de defraudação dos interesses que justificaram a criação do órgão e da função. I.e., de fraude à nação que os sustenta.
É incompreensível, pois, que num país com esta matriz de funcionamento - e só uma intolerável hipocrisia permitirá contestar isto - se pretenda agora estranhar que outras instâncias formais de controlo por vezes "fechem os olhos", por vezes "assobiem para o lado", por vezes, perante o ilícito, "dêem às de Vila-Diogo". Pior: há quem tenha a desfaçatez de pretender censurar-lhes seja o que for!
Mas tolerar a violação desbragada do Código da Estrada, o descarado tráfico de droga ou as manifestas burlas processuais é menos grave do que não detectar alegadas infracções financeiras? Obviamente que não.
A questão é outra e bem distinta: é cultural. É a de um país em que se tem de falar em "tolerância zero" para se dizer que a lei é para cumprir!
Ora, cumprir a lei é uma questão de hábito, de escrúpulo, de ordem e de profissionalismo no exercício das funções confiadas. De todos e em tudo: nopequeno no grande. E nisso, bem... nisso Portugal é o que é!

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