Não é a cultura da nota que é nociva, é o ministro
Inês Teotónio Pereira, ionline 2016.01.19
As bolsas e os empregos devem ser oferecidos com base em coisas menos nocivas que as notas, como as cunhas, a origem social, o estilo, a cor dos olhos, ou mesmo ao calhas – com a ajuda de uma tômbola.
Há uns dias, um dos meus filhos chegou a casa aos saltos de alegria porque tinha conseguido 18 valores num teste; outro, igualmente radiante, entrou a exibir dois testes com a classificação de excelente. Não é todos os dias que estes meus filhos conseguem notas destas, sendo o mérito todo deles e dos professores – eu sou péssima mãe/explicadora. Ora, motivada por estes feitos, ganhei coragem, pedi--lhes para guardarem os testes e dei-lhes a triste notícia: “Meninos, a cultura da nota é nociva!” Como eles ficaram a olhar para mim, gelados, expliquei que as coisas tinham mudado: “Eu só quero o vosso bem e um senhor muito inteligente, que sempre teve notas excelentes e estudou nas melhores universidades do mundo, diz que as notas fazem mal aos meninos.” As crianças estavam estupefactas: “Mas, mãe, o que é nociva?” Expliquei que nociva é uma coisa má, prejudicial ou mesmo tóxica – tal como os cigarros, a droga ou o excesso de álcool. “A sério, as notas são como o tabaco?! Nunca mais tenho boas notas, mãe, juro!”, exclamou o mais novo, sem conseguir disfarçar alguma comoção. “Calma”, retorqui com serenidade maternal, “uma notinha ou outra muito boa também não faz mal, acontece a todos; o que interessa é que estudem sem pensar nas notas, isso é que é feio. É o mesmo que trabalhar a pensar no ordenado – uma coisa também muito nociva. Por isso, a partir de hoje, não se pronuncia mais a palavra nota nesta casa”, rematei.
E foi desde esse dia, desde o dia em que o jovem ministro da Educação se abeirou de uma comissão parlamentar para declarar o que muitos sabiam mas poucos tinham coragem de dizer – que a cultura da nota é nociva –, que estou em paz com os meus meninos. Obrigada, jovem ministro. Cá em casa acabaram-se os gritos, os castigos, as noitadas de estudo, a tensão na véspera dos testes, a tensão na altura da entrega dos testes, as explicações, os exasperantes TPC e todas as outras coisas que intoxicam a relação com os meus filhos. Agora só estuda quem quer e quando quer, e estão todos proibidos de o fazer na véspera dos testes, pois isso configura de forma chocante a nociva cultura da nota. E nós somos assumidamente incultos da nota: ninguém estuda para os resultados, mas sim por desporto ou lazer.
A verdade é que esta questão das notas tem consequências sérias: quando alguém estuda com o objetivo de ter boas notas, essa pessoa arrisca-se a ganhar bolsas de estudo, a estudar nas melhores universidades do mundo ou, quem sabe, a ter ofertas de emprego extraordinárias. Pois isso não está certo – é mesquinho. As bolsas e os empregos devem ser oferecidos com base em coisas menos nocivas como as cunhas, a origem social, o estilo, a cor dos olhos, ou mesmo ao calhas – com a ajuda de uma tômbola, vá.
Nós, os incultos da nota, achamos que o seu valor é sempre irrelevante, prejudicial, pode viciar e tem o efeito perverso de fazer com que toda a gente queira aprender mais e ensinar melhor, com base nos resultados e como garantia para o futuro. Ora, se isto não é uma forma de fascismo e elitismo, então não sei o que é uma forma de fascismo e elitismo. As pessoas têm de querer aprender mais e ensinar melhor porque sim e pronto. Quanto ao futuro, a Deus pertence. Desta forma é garantido que não se evolui e que quem não aprendeu não precisa de recuperar: assume-se que toda a gente aprendeu e acaba-se com as chatices das avaliações externas, das notas – lá está, que só servem para saber quem aprende e quem ensina bem. Uma reles coscuvilhice, é o que é.
Pois posso afirmar com orgulho maternal que todos os meus filhos estão empenhados neste novo paradigma educacional que é serem excelentes incultos da nota: eles só estudam quando não têm absolutamente mais nada para fazer. Tenho fé que assim todos conseguirão alcançar esta falta de resultados a que se propõem com afinco e que nenhum deles se arrisca a chegar a investigador em Cambridge, pelo menos por mérito, ou a ministro da Educação de governos nocivos.
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