A Cândida e o António
José Maria C.S. André
Correio dos Açores, Verdadeiro Olhar, ABC Portuguese Canadian Newspaper, Spe Deus, 17-I-2016
Quando os jornais destes
dias noticiaram a morte da Dra. Cândida Ventura, indómita lutadora «anti-fascista»,
lembrei-me do António.
Durante muitos anos, a
indómita lutadora defendeu coisas aberrantes, mas é justo lembrar esses excessos
no seu contexto. Em Portugal, ainda não havia mecanismos eleitorais livres, de
modo que quem queria mudanças sentia-se empurrado para a revolução armada. Pelo
menos, assim reagiam alguns. Outros acomodavam-se, temendo que «fosse pior a
amêndoa que o cianeto» – como dizia um conhecido meu, que gostava de citar
provérbios e autores clássicos. A Dra. Cândida Ventura não era de se ficar. Alistou-se
no Partido Comunista e trabalhou na clandestinidade para derrubar o Governo. Chegou
a fazer parte do Comité Central. Foi parar à prisão, mas a saúde deteriorou-se,
a polícia compadeceu-se e libertou-a antes do tempo previsto. Logo que a
soltaram, correu a abrigar-se por trás da Cortina de Ferro, como representante
do PCP em Praga. A vida no paraíso comunista não correspondia à descrição do
paraíso e a enérgica Cândida Ventura começou a entrar em conflito. Abreviando:
acabou em divergência aberta com Álvaro Cunhal e todos os outros dirigentes e
abandonou o Partido.
O António Patrício Gouveia
era um rapaz meu conhecido, uns 8 anos mais velho. Recordo-o alto, elegante,
exuberante de iniciativas, com o coração a transbordar generosidade e uma
capacidade fantástica de fazer amigos. Tinha concluído uma pós-graduação em
relações internacionais nos Estados Unidos e estava feliz, recém-casado com uma
rapariga de quem vivia enamorado. Obviamente, sonhava mudar o mundo. E, tudo
isto, intensamente.
Com o entusiasmo que o
caracterizava, o António começava o dia fazendo oração. Depois, irrompia todos
os dias na Missa da manhã e continuava mais um tempo na igreja a agradecer a
Comunhão. Ao longo do frenesim do dia, rezava o terço e dedicava vários
intervalos à oração. Num deles, percebeu que Deus o chamava a ser do Opus Dei
e, desde então, esforçava-se por ser fiel a essa vocação. Além da Missa, procurava
passar pela igreja mais alguma vez, para adorar o Senhor no Sacrário. E tinha
tempo para rir, com aquela sua felicidade contagiosa, e acompanhar o ritmo
desenfreado de Francisco Sá Carneiro, que escolheu aquele miúdo como chefe de
gabinete. Foi nessa função que o António se cruzou com a Cândida. Tudo a
correr, rapidíssimo. A antiga comunista estava com uma neta e o António só teve
tempo de lhe dizer que, se a pequena se quisesse baptizar, falassem com a mãe
dele para lhe dar catequese.
A história do António ficou
por aqui, tanto mais que pouco depois ele explodiu nos ares, no mesmo avião que
Sá Carneiro e Amaro da Costa. A história da neta da Cândida continuou, porque a
pequena quis baptizar-se e foi pedir à mãe do António que a preparasse.
Passado alguns anos, a própria
Cândida ganhou balanço e foi bater à mesma porta, para receber catequese e
baptizar-se.
Numa época em que eu
viajava frequentemente ao Algarve, cruzei-me algumas vezes com um grupo de
universitárias minhas conhecidas, que participavam em palestras e momentos de
oração: lembras-te de uma velhinha simpática que vinha connosco? Era a Cândida
Ventura! Lembro-me vagamente do grupo, mas não recordo as caras. Assim, perdi a
oportunidade de conhecer uma lendária anti-fascista. Agora, ando à procura do número
de telefone:
– Alô, Céu? Daqui Terra! Há
possibilidade de saber o que o António disse à Cândida, quando ela aí chegou?
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