Novo PREC ou PPPC?

Viriato Soromenho Marques
DN 2015.11.02

Por muito criticável que se possa considerar o exercício de liderança de António Costa (A.C.), transformando uma derrota eleitoral perante uma coligação sem maioria absoluta numa vitória política que lhe permitirá, pelo menos, chefiar durante algum tempo o seu próprio governo, não me parece que um olhar isento possa declarar que a normalidade constitucional esteja a ser substituída por um novo PREC, como afirmou Paulo Portas. O traço de personalidade semipresidencialista da nossa democracia representativa tem permitido, com alguma frequência, fenómenos de "presidencialismo do primeiro-ministro", na certeira expressão de Adriano Moreira. Tal foi o caso nos governos de maioria absoluta de Cavaco Silva, José Sócrates e até no anterior governo de Passos Coelho. O que está a acontecer perante os nossos olhos é algo de diferente e raro. Aproveitando os seis meses de "imortalidade" que a Constituição confere a novos governos que coincidem com presidentes em crepúsculo de mandato, A.C. conseguiu transformar o registo semipresidencial do regime num parlamentarismo quase tão puro como o da Câmara dos Comuns. É exatamente o contrário do PREC, que colocava a lógica revolucionária da rua e da legitimidade da "mobilização das massas" em oposição à legitimidade dos deputados e das "leis burguesas" parlamentares. Desta vez, a rua não cerca o Parlamento nem sequestra os deputados, como em 1975. Muitos eleitores, quando muito, poderão sentir que a sua intenção de voto foi deturpada pelos eleitos. Contudo, o que está a acontecer não é um PREC, que implicaria um duplo poder alternativo ao Parlamento, mas um PPPC (Processo de Parlamentarismo Puro em Curso), através do qual os deputados interpretam o poder que lhes foi conferido pelos eleitores, não na forma mínima de "espelho representativo", mas na liberdade máxima de um verdadeiro "filtro representativo", que permite aos deputados incluir uma quase completa autonomia de juízo e decisão na lista dos poderes que lhes foram transferidos pelos cidadãos através do voto. O PPPC assumiu mesmo inéditos laivos de secretismo, nos antípodas do espetáculo revolucionário. Ainda não sabemos o teor do acordo, que já é apresentado como certo. A liderança de A.C. não evoca o processo mental de pincelada ideológica de Lenine, mas antes a ourivesaria calculista de um Richelieu.
É errado afirmar que a estabilidade governativa coincide sempre com a saúde da democracia. O índice mais completo e isento sobre o estado da democracia no mundo pertence à revista The Economist. Em 2011, a vinda da troika, mesmo com um governo estável, acentuou um declínio que já vinha de 2008. Portugal passou da condição de "democracia plena" (mais de 8 pontos numa escala de 0 a 10) para "democracia imperfeita" (7, 81 em 2011 e 7, 79 em 2014). A austeridade tem ferido a nossa democracia, até porque a integração europeia usurpou coactivamente poderes soberanos que não lhe foram atribuídos (essa é a tragédia do Tratado Orçamental). A hemorragia económica e demográfica do país exige uma mudança, prudente e profunda, simultaneamente nacional e europeia, que a direita não quis operar. Costa poderia tentar pressionar essa mudança a partir da trincheira da oposição, como sugere Francisco Assis. Preferiu arriscar uma aliança inédita, insólita e incerta à sua esquerda. Por egoísmo patriótico, espero estar errado quanto às probabilidades de sucesso desta aventura, que já passou a fase de não-retorno.

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