O PS não só saltou o muro, como se instalou no outro lado
Henrique Monteiro, Expresso, 2015.11.20
Sejamos claros: toda a gente foi a favor do 25 de Abril, menos um punhado de adeptos do antigo regime. Essa unanimidade baseou-se no facto de o programa do MFA ter uma abrangência de liberdade e diversidade que todos abarcava. Um ano e meio depois, no 25 de Novembro, o país estava dividido. Houve vencedores e perdedores. Curioso é o facto de o principal vencedor querer agora estar ao lado dos vencidos
O PS, ao tentar boicotar qualquer comemoração dos 40 anos da data que devolveu a democracia plena a Portugal, não só pondo fim às tentações hegemónicas e totalitárias do PCP como mantendo intactos os direitos de quem queria impor essa linha ao país, saltou definitivamente o muro e instalou-se do outro lado.
Ontem, na SIC Notícias, o que ouvi João Galamba dizer não se distingue substancialmente do que diria qualquer membro do PCP: “Prefiro festejar o 25 de Abril.” Galamba é novo, mas já tem idade para saber que sem o 25 de Novembro não festejaria este 25 de Abril das liberdades, da diversidade e do pluralismo, mas provavelmente um outro com paradas, pioneiros, bandeiras unicolores e coisas assim, acaso, pelo meio, não tivesse eclodido uma guerra civil, como esteve perto.
Isto é grave? Depende da perspetiva, mas a mim incomoda-me que PCP e Bloco afirmem não perder a sua identidade e possam votar contra a Nato no Parlamento Europeu. Mas levem o PS a renegar um feito que é seu, por medo de incomodar os seus aliados de momento. Mário Soares sempre falou desta data como a reposição da pureza original do 25 de Abril. E como Soares, assim se pronunciaram outros, de Eanes a Sá Carneiro, de Vasco Lourenço a Melo Antunes, passando pelos inúmeros militares, mais à esquerda ou mais à direita, que foram decisivos nesse dia.
Se não é por causa dos parceiros que o PS se esquiva ao 25 de Novembro, temos um caso mais grave: os socialistas mudaram de política e de desígnio. Renegar o 25 de Novembro é concordar com o caminho anterior: nacionalizações da banca, dos seguros, dos jornais, de tudo; unidades coletivas de produção agrícola depois de expulsos os seus legítimos proprietários; saneamentos selvagens nas empresas de todos os que não seguiam a linha política oficial do Governo e do PCP; ocupação de emissoras e de jornais que lhe fugiam ao controlo; barricadas nas ruas para controlar quem se queria manifestar contra o caminho que o país levava; cercos ao Parlamento e ao Governo contra as medidas ali democraticamente aprovadas. E muitos etc.
O 25 de Novembro não foi uma vingança. A prova é que os autores morais e materiais do que anteriormente acontecia mantiveram intacta a sua liberdade e a sua representatividade parlamentar. Participaram em todos os atos cívicos posteriores e integraram-se na democracia pluripartidária e sem tutela que a partir dessa data efetivamente se construiu. É bom recordar que foi um dos ‘golpistas’ do 25 de Novembro, Ernesto Melo Antunes, quem declarou que o PCP era indispensável à democracia. E que o fez sem a oposição de nenhum partido. Como é bom recordar que nas primeiras eleições, a 25 de abril de 1975, sob pleno ‘gonçalvismo’, alguns partidos (embora marginais) foram impedidos de concorrer.
Esta ideia de que o PS mudou de características sei que é vista como uma tese reacionária. Deixem, pois, que me socorra de alguém insuspeito: o ex-dirigente do Bloco de Esquerda João Semedo escreve hoje no ‘Público’ um texto, intitulado “António Costa e a esquerda: o que mudou?”, onde insiste no ponto de que a unidade era há muito desejada pelo Bloco -“só por fraca memória ou reserva mental se podem ignorar os múltiplos desafios lançados pelo Bloco de Esquerda ao PS”. Mais à frente, ao caracterizar a composição atual do Parlamento e a singularidade de o PS não fazer maioria com o CDS nem com o BE ou o PCP isoladamente, afirma preto no branco sobre a unidade à esquerda: “É uma atitude que rompe com a história do PS.” E, prudentemente, a meu ver, acrescenta: “É completamente inútil especular sobre as motivações de António Costa ou tentar adivinhar qual teria sido a decisão de António Costa se os votos tivessem sido outros.” Não são necessárias mais palavras.
Ou melhor, talvez mais umas, para referir que Francisco Louçã disse o óbvio (mas que foi importante ser ele a dizer) na RTP: que o acordo de esquerda devia ter sido assinado a três e que só não o foi porque o PCP não quis. Não há dúvida que o termo ‘geringonça’, cunhado por Vasco Pulido Valente, parece ser adequado. Sobretudo depois de o fundador do Bloco ter afirmado, com o seu modo tranquilo, que “Mário Centeno não deve ter lido os acordos do PS com os partidos de esquerda”.
Há uma maldição chinesa que reza assim: “Que possas viver tempos interessantes”.
Tenho ideia de que essa maldição se abateu sobre todos nós.
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