25 de Novembro: o fim da revolução

Jornal O Diabo, 2015.11.24
O contragolpe dos militares democratas esmagou a intentona da tropa fandanga às ordens dos comunistas e da esquerda radical. Os extremistas ocuparam quartéis, saíram à rua e mataram com o objectivo de estabelecer uma nova ditadura. Em derrapagem desde o início de 1975, a deriva atingiu o auge no chamado “Verão quente”, com a multiplicação das ocupações de casas e de terras. Sem esquecer o sequestro do primeiro-ministro e da Assembleia Constituinte, que levou o Governo a declarar greve…
O “estado de graça” da nova situação política resultante do golpe militar de 25 de Abril de 1974 durou poucos meses. Na sequência da “inventona” do 28 de Setembro – uma manobra do PCP e dos seus aliados para afastar do processo político personalidades e partidos de direita, aproveitando a convocação de uma manifestação de apoio ao Presidente da República – Spínola renunciou à chefia do Estado.
Sucedeu-lhe o general Costa Gomes, chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), que reafirmou a confiança no primeiro-ministro pró-comunista Vasco Gonçalves. Este, entretanto promovido a brigadeiro, formou o 3º Governo Provisório, onde se manteve a representação do PS e PSD, mas foi reforçada a componente da esquerda militar e dos independentes ‘compagnons de route’ do PC.
Por essa altura tiveram início as ocupações de terras no Alentejo, em nome da “reforma agrária”. Em Lisboa, Setúbal e noutras cidades, sobretudo do sul do país, sucederam-se as ocupações de fábricas, casas e empresas. Os comunistas e o seu satétite MDP/CDE apoderaram-se de lugares-chave do aparelho de Estado e da administração central e local.
Em finais de Dezembro de 1974, no 1º Congresso do Partido Socialista, a liderança de Mário Soares esteve por um fio, ameaçada pela facção de Manuel Serra, um “submarino” infiltrado pelos comunistas. Serra abandonou o PS pouco depois para fundar a FSP, que imediatamente deixou cair a máscara e se revelou como mais um satélite do PC.
ralisEm Janeiro de 1975, o MFA pressionou o Governo a consagrar na lei a “unicidade sindical”, isto é, a existência de uma única central sindical – no caso, a Intersindical (hoje CGTP), correia de transmissão do PC. O ministro da Justiça e nº 2 do PS, Salgado Zenha, assinou no Diário de Notícias um artigo demolidor para a “unicidade” e em defesa da liberdade sindical. As tensões entre socialistas e comunistas agudizavam-se à medida que se aproximava a data marcada para a eleição da Assembleia Constituinte, conforme previsto no programa do MFA. Nos quartéis, os oficiais moderados, geralmente designados por “spinolistas”, ganharam as eleições para representarem as respectivas armas e unidades na Assembleia do MFA. Um choque para a “esquerda militar” de Vasco Gonçalves, fiel intérprete dos interesses comunistas.
11 de Março de 1975. Aparelhos da Força Aérea bombardeiam o então Regimento de Artilharia Ligeira nº 1 (RAL 1), em Lisboa (logo a seguir rebaptizado RALIS), cercado por pára-quedistas. O general Spínola, acusado de estar na origem da tentativa de golpe, fugiu para Espanha. Vários oficiais spinolistas foram presos, enquanto muitos empresários abandonaram o país a caminho de Espanha e do Brasil, incluindo António Champalimaud, a família Espírito Santo e os irmãos Mello, da CUF.
Na “assembleia selvagem” do MFA, como ficou conhecida, houve quem sugerisse o “fuzilamento dos fascistas”… A verdade sobre a origem do 11 de Março nunca foi totalmente apurada, mas do que se sabe incluiu uma “casca de banana” lançada pelos esquerdistas, com a ajuda de serviços secretos estrangeiros: Spínola teria sido alertado para a existência de uma lista de personalidades de direita, incluindo ele próprio, prestes a serem assassinadas pela LUAR ou pelo PRP – a “matança da Páscoa”. Nunca ninguém viu a referida lista…
PREC de má memória
6768469_pPwygVasco Gonçalves, entretanto promovido a general, formou o 4º Governo Provisório, que seguiu uma política ainda mais esquerdista. A nacionalização da banca e dos seguros foi decretada nessa altura, arrastando milhares de pequenas empresas, incluindo barbearias… Foi extinto o Conselho de Estado, cujas competências foram herdadas pelo Conselho da Revolução, um novo órgão de poder que manteve a influência dos militares na política portuguesa até 1982. Uma nova sigla entrou nessa altura no vocabulário político português: PREC, Processo Revolucionário Em Curso.
As eleições para a Assembleia Constituinte, marcadas para o início de Abril, foram adiadas para 25 desse mês – e Vasco Gonçalves chegou a pôr em causa a sua realização, quando disse que “as conquistas da revolução não podem ser postas em causa por via eleitoral”. A contrapartida para a realização das eleições foi a assinatura do Pacto MFA-Partidos. Estes tiveram que assumir o compromisso de não pôr em causa a “via socialista” na futura Constituição. Assinaram, entre outros, o CDS, o PPD (depois PSD) e o PS. Apesar disso, o CDS e o PPD foram alvo de perseguições e impedidos de realizar comícios e outras acções de campanha em vários pontos do sul do país.
Em 25 de Abril de 1975 realizaram-se as eleições para a Assembleia Constituinte. O PS obteve 37,8% dos votos; seguido do PPD, com 26,3%; o PCP, com 12,5%; o CDS, com 7,6%; e o MDP/CDE, 4%.
Mas o poder não reflectia a realidade eleitoral. Comunistas e extrema-esquerda, apoiados pelos sectores radicais do MFA, reunidos em torno de Otelo Saraiva de Carvalho, segundo comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente, comandado formalmente por Costa Gomes), rivalizavam na reivindicação de políticas cada vez mais “avançadas”.
O jornal República, dirigido por Raul Rego, dirigente do PS, foi ocupado pelos gráficos, que expulsaram o director e a maioria da Redacção. Também a Rádio Renascença foi ocupada por esquerdistas que colocaram a Emissora Católica Portuguesa “ao serviço da classe operária e do povo trabalhador”. No Diário de Notícias, cujo director-adjunto era o futuro Prémio Nobel da Literatura José Saramago, mais de 20 jornalistas foram “saneados” (despedidos) pela liderança comunista, sob a acusação de “reaccionários”.
Uma manifestação de protesto contra a execução de dois terroristas pelo governo do país vizinho descambou num assalto à embaixada de Espanha em Lisboa, que foi incendiada. A poderosa divisão blindada Brunete, a unidade mais moderna e eficaz do exército espanhol, fez exercícios perto da fronteira portuguesa.
UDP Mario ToméPerante a derrapagem da revolução, temeu-se a intervenção da NATO. A ameaça de guerra civil tornou-se real. No norte de Portugal, tradicionalmente conservador, sucediam-se os assaltos a sedes do PCP e dos seus satélites, designadamente o MDP/CDE. Multiplicaram-se as acções de grupos clandestinos anticomunistas, como o Exército de Libertação de Portugal (ELP), o Movimento Democrático para a Libertação de Portugal (MDLP), ligado a Spínola, e o Movimento Maria da Fonte, apoiado por sectores da Igreja, designadamente na arquidiocese de Braga.
O 1º Congresso do CDS, no Palácio de Cristal, no Porto, foi boicotado por militantes de extrema-esquerda. Governantes democratas-cristãos europeus, incluindo antigos primeiros-ministros da Bélgica e da Holanda, ficaram sequestrados durante horas. A situação só se resolveu graças às pressões exercidas por aqueles países sobre Costa Gomes, que acabou por mandar a tropa garantir a evacuação, em segurança, de congressistas e convidados.
Entretanto, Mário Soares conspirava febrilmente com as embaixadas britânica e americana. O embaixador dos EUA, Frank Carlucci, mais tarde director da CIA, deu-lhe um apoio precioso, contra a opinião do secretário de Estado Henry Kissinger, que achava que Soares era o Kerensky português e que o país devia ser abandonado à mercê dos comunistas, para servir de “vacina” à Europa, onde os PC’s de Itália e de França tinham, nesse tempo, assinalável força eleitoral.
Com Sá Carneiro ausente, por doença, em Londres, o seu substituto na liderança do PPD, Emídio Guerreiro garantiu numa entrevista poder mobilizar 50 mil homens em armas para resistir à instauração de uma ditadura comunista. Chegou a preparar-se a transferência da Assembleia Constituinte de Lisboa para o Porto. Agricultores organizados na Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) cortaram a estrada em Rio Maior, separando o Norte democrático da “comuna de Lisboa” e do “Alentejo vermelho”. A moca de Rio Maior tornou-se um símbolo da resistência anti-PC.
Verão Quente a escaldar
O Verão de 1975 ficou conhecido em Portugal como o “Verão Quente”. Os socialistas de Mário Soares abandonaram o Governo, imitados logo a seguir pelos sociais-democratas do PPD. Vasco Gonçalves tentou substituí-los, mas acabou por formar um novo executivo. O 5º Governo provisório foi composto apenas por militares e “independentes” alinhados com o PC ou os seus satélites.
Em Julho, o PS, apoiado por todos os partidos à sua direita, realizou um comício gigantesco na Fonte Luminosa, em Lisboa. Perante mais de uma centena de milhar de pessoas, Mário Soares denunciou o “anarco-populismo”, chamou “tresloucado” ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves e alertou contra o perigo de uma nova ditadura.
À esquerda, consumou-se a ruptura entre Vasco Gonçalves e Otelo. Surgiu então na cena política um grupo militar de extrema-esquerda, Soldados Unidos Vencerão (SUV), cujos dirigentes deram conferências de imprensa encapuzados e desfilaram em Lisboa e no Porto à frente de soldados fardados. Os militares moderados publicaram uma declaração em que reclamavam o afastamento de Vasco Gonçalves. O comunicado, assinado por nove elementos do Conselho da Revolução (Melo Antunes, Vasco Lourenço, Vítor Alves, Vítor Crespo, Pezarat Correia, Franco Charais, Sousa e Castro, Costa Neves e Canto e Castro), passou à história como o “Documento dos Nove”.
Com o Governo cada vez mais isolado, a economia à beira da bancarrota e a sociedade à espera da guerra civil, Costa Gomes acabou por deixar cair Vasco Gonçalves. Uma assembleia do MFA realizada em Tancos forçou a demissão do primeiro-ministro, substituído pelo almirante Pinheiro de Azevedo, que chamou socialistas e sociais-democratas para o 6º Governo Provisório, em Setembro de 1975.
Governo em greve
Mas os radicais não desarmavam. Uma manifestação de operários da construção civil controlada pela Intersindical cercou a Assembleia Constituinte e a residência oficial do primeiro-ministro, em S. Bento. Os deputados foram sequestrados durante vários dias, com excepção dos do PC, do MDP/CDE e do único deputado da UDP, que confraternizaram com os manifestantes.
O primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, que ficou conhecido como “o almirante sem medo”, tomou então uma medida inédita. O Governo fez greve, em protesto pelo sequestro: “Não gosto de ser sequestrado!” Quando um manifestante pretendeu insultá-lo chamando-lhe “Fascista!”, Pinheiro de Azevedo respondeu-lhe à letra: “Bardamerda para o fascista!”
As medidas do “almirante sem medo” foram expeditas. Como a Igreja continuava a reclamar a devolução da Rádio Renascença mas o Governo não tinha capacidade para expulsar os esquerdistas que ocupavam as instalações, mandou destruir à bomba as antenas emissoras. As primeiras semanas do governo de Pinheiro de Azevedo foram de resistência contra a sabotagem da extrema-esquerda militar e civil. Até que uma decisão polémica do chefe do Estado-Maior da Força Aérea, general Morais da Silva, desencadeou a ocupação de unidades de pára-quedistas por parte de militares radicais. Era a provocação por que os moderados esperavam.
O contra-golpe
December 1975, Restelo, Portugal --- Portugal after Carnation Revolution --- Image by © Alain Keler/Sygma/CorbisO grupo dos “Nove”, chefiado politicamente pelo major Melo Antunes, tinha um plano de batalha elaborado pelo coronel (mais tarde general) Tomé Pinto e desencadeou uma acção global. Em 25 de Novembro de 1975, o Presidente Costa Gomes declarou o “estado de sítio” na região de Lisboa, enquanto os comandos do coronel (futuro general) Jaime Neves neutralizavam as principais unidades militares de esquerda na capital. Na Polícia Militar, onde pontificava o segundo comandante, major Mário Tomé (mais tarde deputado da UDP e hoje entusiasta do Bloco de Esquerda), houve troca de tiros, tendo sido atingidos mortalmente dois comandos pelas balas dos extremistas.
Outro quartel neutralizado foi o RALIS, comandado pelo major Dinis de Abreu, mais conhecido pela alcunha de “Fittipaldi dos Chaimites”, onde apenas quatro dias antes tinha ocorrido um episódio lamentável, símbolo do estado de degradação a que tinha chegado a (in)disciplina no Exército português. Foi o tristemente célebre juramento de bandeira com o punho fechado, em que os recrutas comandados por Dinis de Almeida juraram estar “sempre, sempre ao lado do povo, ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador… pela vitória da revolução socialista”.
Otelo hesitou no momento de assumir a responsabilidade de precipitar a guerra civil e impediu as suas forças de reagir. Os fuzileiros, onde se receava que se fizesse sentir a influência de Rosa Coutinho, também não saíram do quartel.
Na televisão, a figura patética do barbudo capitão Duran Clemente, de autocolante com a palavra de ordem “Poder Popular” (uma das favoritas dos radicais) no camuflado, desapareceu dos ecrãs para ser substituído pelo humorista Danny Kaye, num filme emitido a partir do Porto. A ala esquerdista do MFA estava decapitada e reduzida à impotência.
À noite, no Palácio de Belém, o tenente-coronel (depois general) Ramalho Eanes, coordenador das operações militares, felicitou Jaime Neves pela disciplina e eficácia dos seus comandos.
A revolução tinha acabado.

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