Carta aberta a Vital Moreira

Mário Pinto
Observador, 20151128

É «vis» jacobina de Vital Moreira em matéria de educação escolar que o cega e o leva a manter a tese que defendeu na Constituinte em 1976 e que hoje, 7 revisões constitucionais depois, é insustentável
  1. Num artigo contra o financiamento público do ensino privado, recentemente publicado no jornal “Económico”, intitulado «Chular o Estado» (expressão grosseira esta que melhor revela uma paixão figadal do que titula um discurso racional), o Prof. Vital Moreira veio, mais uma vez, agora oportunamente no contexto da nova maioria ideológica de extrema-esquerda no Parlamento, defender o monopólio do financiamento público do ensino apenas para os alunos das escolas estatais, discriminando desse financiamento os alunos que escolham as escolas privadas para cumprir a escolaridade obrigatória. Ora, o que é certo é que todos os alunos, cidadãos portugueses, são titulares de iguais direitos sociais de acesso ao ensino obrigatório gratuito, sem terem de sofrer discriminação. E é igualmente certo que as várias leis em vigor (todas elas, sem excepção) desenvolvem o regime constitucional reconhecendo claramente que não há discriminação entre os alunos das escolas estatais e os das escolas privadas, para efeito do financiamento público do ensino escolar obrigatório e gratuito.
  2. Vital Moreira despreza as leis que vigoram em Portugal. Uma vez que, como bom jurista que é, não ignora a lei (de resto, a ignorância da lei não aproveita a ninguém), conclui-se que é a sua «vis» jacobina, em matéria de educação escolar, que o cega e o leva a manter por anos e anos a tese que defendeu na Constituinte em 1976 — a qual hoje, perante as revisões Constitucionais ocorridas e a legislação que tem vindo a interpretar e desenvolver a Constituição, é insustentável. Efectivamente, quando expõe essa tese, ele nunca se apoia no regime constitucional actual interpretado segundo as leis que legítima e necessariamente o desenvolvem. Em vez disso, atribui (apenas nominalmente) à Constituição o seu próprio pensamento privado e pessoal, sem nunca citar quaisquer textos nem constitucionais nem legais.
  3. Mantendo eu, sobre esta matéria, aliás com prazer intelectual e político, uma velha contenda com Vital Moreira, cuja inteligência e vigor pessoal muito estimo (a qual se iniciou publicamente na Assembleia Constituinte), não se estranhará que venha agora, mais uma vez, em resposta a esta sua nova sua intervenção, em defesa dos alunos das escolas privadas (e de seus pais), contra a injusta e inconstitucional discriminação a que ele os condena. Sobre a história deste debate na Constituinte, permito-me remeter os leitores interessados para dois livros: um, da minha autoria, intitulado “Sobre os direitos fundamentais de educação“, 2008, Universidade Católica Editora; e outro, da autoria de dois ilustres universitários, Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva, intitulado “O momento constituinte. Os direitos sociais na Constituição“, 2010, Almedina.
  4. Mas para tentarmos um passo adiante da simples reedição de argumentações já anteriormente publicadas, desta vez proponho-lhe expressamente que, em vez disso, passemos a apresentações interpretativas do direito sobre o ensino privado, implicante em matéria de financiamento público. Para tanto, começarei por enunciar, no curto espaço deste artigo, algumas (muito poucas mas decisivas) normas jurídicas, que (felizmente) nos regem. Esperando que o Prof. Vital Moreira não deixe de replicar, com a interpretação que faz dessas (e doutras, se assim quiser) normas legais vigentes, confrontando a sua tese com elas — o que, como já disse, não tem feito, mas deve ao público a quem nos dirigimos.
  5. Começarei por um dos mais recentes diplomas legislativos, Lei n.º 85/2009, do tempo do Governo Sócrates, em actualização da Lei de Bases do Sistema Educativo. Diz assim (por brevidade, omito indicações de números e artigos): «A escolaridade obrigatória implica, para o encarregado de educação, o dever de proceder à matrícula do seu educando em escolas da rede pública, da rede particular e cooperativa ou em instituições de educação e ou formação, reconhecidas pelas entidades competentes, determinando para o aluno o dever de frequência». «No âmbito da escolaridade obrigatória o ensino é universal e gratuito. A gratuitidade prevista no número anterior abrange propinas, taxas e emolumentos relacionados com a matrícula, frequência escolar e certificação do aproveitamento, dispondo ainda os alunos de apoios no âmbito da acção social escolar, nos termos da lei aplicável. Os alunos abrangidos pela presente lei, em situação de carência, são beneficiários da concessão de apoios financeiros, na modalidade de bolsas de estudo, em termos e condições a regular por decreto-lei.» Note-se que a lei diz que a escolaridade obrigatória se pode cumprir quer nas escolas do Estado quer nas privadas, e acrescenta que, «no âmbito da escolaridade obrigatória, o ensino é gratuito» — o ensino é que é gratuito, não a escola.
  6. Seguirei pelo diploma legal que, desde 1990, vai para 25 anos, desenvolve e executa o regime constitucional da gratuitidade do ensino obrigatório. Diz assim o DL nº 35/90: «Durante o período da escolaridade obrigatória o ensino é gratuito. A gratuitidade da escolaridade obrigatória consiste na isenção total de propinas, taxas e emolumentos relacionados com a matrícula, a frequência escolar e a certificação de aproveitamento. O presente diploma aplica-se aos alunos que frequentam o ensino não superior em estabelecimentos de ensino oficial, particular ou cooperativo». Não pode haver nada de mais claro. E se alguém quiser conhecer melhor a génese deste regime da gratuitidade universal do ensino escolar obrigatório, expressamente aplicável no ensino particular e cooperativo, portanto para os alunos das escolas privadas, pode consultar sobre este ponto o Parecer nº 1/89, do Conselho Nacional de Educação, precisamente sobre o projecto deste diploma da gratuitidade da escolaridade obrigatória, oficialmente publicado por esse CNE.
  7. Como é evidente, o direito à gratuitidade do ensino obrigatório destina-se, antes de tudo, a garantir o direito «de aprender». E só secundária, e instrumentalmente, a garantir o direito «de ensinar». Ora, o direito e a liberdade de aprender é do aluno, ou dos seus pais, e é igual para todos. Quanto à liberdade e direito de ensinar, pelo contrário, a Constituição discrimina negativamente o Estado, proibindo o Estado-educador nos seguintes termos: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (art. 43º, nº 2). Se preciso fosse, esta norma constitucional, por si só, impediria o Estado de monopolizar na escola pública-estatal (de projecto educativo por si dirigido) o ensino escolar obrigatório gratuito. Note-se que esta norma constitucional que estabelece a «capitis diminutio» do Estado em matéria de ensino foi proposta pelo PS, na Assembleia Constituinte, e aprovada pelo PS, PPD e CDS, com voto contra do PCP e de Vital Moreira.
  8. Assim, o dever constitucional de o Estado garantir «estabelecimentos públicos» para todos aqueles que os queiram escolher — uma vez que não são obrigatórios, visto que os cidadãos são livres de escolher uma escola privada para cumprir o ensino obrigatório — não implica que o Estado só seja obrigado a financiar a gratuitidade naquelas escolas públicas. Com vimos, as leis dizem exactamente que a gratuitidade do ensino obrigatório é universal, tanto nas escolas públicas como nas privadas. A garantia dos direitos pessoais dos cidadãos, de aprender e de ensinar, na medida em que implica financiamento público do direito de acesso ao ensino escolar, não pode ser filtrada por instrumentos escolares ideologizados de Estado, discriminatórios da Sociedade Civil. São os alunos (ou seus pais) que têm constitucionalmente o direito de escolher a sua educação, bem como o respectivo instrumento e projecto pedagógico, que é a escola; não é o Estado. Esta é a boa doutrina do nosso Estado de Direito Democrático e Social. A qual, uma vez assim legalmente fixada, não pode considerar-se reversível na inteira disponibilidade das maiorias parlamentares, por se tratar da em satisfação constitucional do direito social ao ensino escolar gratuito.
  9. Ao contrário do que pretendem os ideólogos do “Estado prestador monopolista de serviços” escolares, o que é pedra de toque do nosso Estado de Direito Democrático e Social é, isso sim, ser ele «garante» de direitos fundamentais (de liberdade e sociais) — a palavra «garantia» é que é a típica palavra constitucional escolhida. Não é verdade (como insinua Vital Moreira) que «a escola privada é apenas uma liberdade individual» que não possa satisfazer direitos fundamentais garantidos (e portanto financiados) pelo Estado. Como já vimos pelas leis citadas, o direito social de acesso ao «ensino escolar obrigatório e gratuito» é direito universal que não está nem constitucional nem legalmente condicionado à frequência de uma escola estatal; pelo contrário, as leis são expressas em alargar a gratuitidade do ensino aos alunos das escolas privadas. Quem recusar estas leis tem de dizer porquê; e não apenas fazer afirmações peremptórias (de mera autoridade privada).
  10. Adenda. Por limitação de espaço, ficam por citar muitas outras normas de direito internacional e de direito interno português, constitucional e legal, que inequivocamente desmentem a tese discriminatória do Prof. Vital Moreira sobre o financiamento do ensino escolar obrigatório gratuito. Se for caso disso, ulteriormente as explicitarei. Peço vénia para dirigir também especialmente esta minha carta aberta ao Prof. Luís Aguiar-Conraria, que, num artigo publicado no Observador, intitulado «A esquerda e a direita de Deus», subscreveu igualmente (se não interpretei mal) a discriminação negativa do ensino privado.

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