Os novos cátaros

P. Gonçalo Portocarrero de Almada | OBSERVADOR |  4/9/2014

A Igreja católica não é um condomínio fechado para almas selectas, mas um hospital de campanha para todos os pecadores.
Um pregador católico inglês, do século passado, escandalizou os seus fiéis ao dizer que era mais provável que a alguém lhe roubassem a carteira numa igreja católica do que num templo anglicano. Inquirido sobre a sua falta de fé na honestidade dos irmãos da sua própria Igreja, esclareceu que, enquanto a Igreja anglicana é só para pessoas respeitáveis, a romana, precisamente porque é católica, ou seja universal, é para todo o tipo de pessoas, ladrões incluídos.
Alguns fiéis aceitam mal esta abertura, que consideram permissiva em demasia. E, por isso, em tempos de crise generalizada da fé e dos bons costumes, optam por se isolarem em pequenos grupos, evitando o pecaminoso contágio e afastando-se dos outros fiéis, não tão exemplares na ortodoxia ou na virtude. Em nome de uma Igreja dos puros, estes novos cátaros fazem da sua intransigência doutrinal o imperativo principal da sua fé, excluindo os pecadores do seu seio e excluindo-se da unidade eclesial. Esquecem, assim, o amor universal de Cristo, que não só conviveu com pecadores públicos, incorrendo no escândalo dos fariseus do seu tempo, como disse também que as mulheres de má-vida os iriam preceder no reino dos Céus (Mt 21, 31). E não relevam que Jesus, como a propósito de Judas Iscariotes fez notar Santo Agostinho, «aguentou um 'demónio' entre os seus discípulos até à sua Paixão (Jo 6,70)» (A fé e as obras, 3-5).
Não são só certos crentes que desejam uma Igreja de eleitos, constituída única e exclusivamente por fiéis exemplares. Também os incrédulos se escandalizam quando vislumbram, dentro dos muros dos templos cristãos, homens e mulheres pecadores, como o carteirista do sermão. Quereriam, eles também, uma Igreja sem mancha nem pecado, feita de anjos e não por homens, uma Jerusalém celestial que nada tivesse que ver com as fraquezas deste mundo.
Tanto uns como outros erram, porque se a Igreja é santa na sua origem e finalidade, é e será sempre pecadora nos seus membros terrenos. Assim o disse Cristo quando ensinou que o trigo e o joio devem permanecer juntos até à ceifa final (cf. Mt 13, 29), ou quando comparou o reino dos Céus a uma grande rede de arrasto, que traz consigo todo o tipo de peixes, bons e maus (Mt 13, 47-52). A Igreja de Cristo não está chamada a ser um luxuoso condomínio fechado, para exclusivo uso de umas quantas almas selectas, mas um pobre hospital de campanha, sempre de portas escancaradas para os seus filhos pecadores e para todos os homens de boa vontade. Os odores de santidade são para o outro mundo porque neste, mais do que as boas obras dos virtuosos, é a pestilência das doenças físicas e morais dos arrependidos o incenso com que Deus quer ser glorificado nos seus templos. Ele não veio ao mundo para os sãos, mas para os enfermos (Mc 2, 17) e é maior a sua alegria por um pecador que se converta, do que por noventa e nove justos que perseverem no bem (Lc 15, 1-7).
Vale mais a unidade da Igreja e a sua solidariedade com os pecadores do que esse rigorismo doutrinal, contrário à caridade apostólica. A tentação dos falsos purismos exclusivistas e sectários não é só de agora, porque também Santo Agostinho denunciou, no seu tempo, as «pessoas que só tomam em consideração os preceitos rigorosos, que mandam reprimir os que causam perturbação, que ordenam (…) que se 'tratem como aos publicanos' aqueles que desprezam a Igreja, que se repudiem do seu corpo os membros escandalosos (Mt 7,6; 18,17; 5,30)» (id.). Era também este santo doutor quem assim vituperava, energicamente, contra esses falsos pastores: «o seu zelo intempestivo causa muita tribulação à Igreja, porque desejariam arrancar o joio antes do tempo e a sua cegueira faz deles próprios inimigos da unidade de Jesus Cristo» (id.).
O bem da comunhão deve prevalecer sobre qualquer outro bem, porque a caridade é o mandamento novo de Cristo (Jo 13, 34-35), a principal das virtudes cristãs (1Cor 13, 13) e a razão da esperança na salvação de todos os homens, sem excepção. «Tomemos cuidado em não deixarmos entrar no nosso coração pensamentos presunçosos – adverte o santo bispo de Hipona – em não procurarmos destacar-nos dos pecadores, para não nos sujarmos com o seu contacto, em não tentarmos formar como que um rebanho de discípulos puros e santos. Sob o pretexto de não frequentarmos os maus, conseguiríamos apenas romper a unidade» (id.).
Há quem se escandalize por encontrar, na Igreja católica, pessoas cristãs que têm dúvidas de fé, ou que atentaram contra a vida dos seus filhos por nascer, ou que esmoreceram na esperança, ou que vivem em uniões não abençoadas pela Igreja, ou que não conseguem ainda amar e perdoar o próximo, ou que seguem tendências contrárias ao uso natural do corpo, ou que são alcoólicas, ou drogadas. Confesso que rejubilo com essas benditas presenças, em que abunda o pecado e sobreabunda a esperança, não só porque são almas predilectas de Deus – as ovelhas pelas quais vale a pena deixar todo o rebanho – mas, sobretudo, porque me sinto confirmado na unidade e catolicidade da minha fé eclesial.
Groucho Marx disse que jamais aceitaria fazer parte de um clube que admitisse pessoas como ele. Eu, pelo contrário, nunca poderia pertencer a uma Igreja que não recebesse pecadores como eu.

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