O lugar de Deus

JOAO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.09.01

É estranho ver aqui um artigo com este título, não é? Vários leitores, irritados ou enfastiados, passaram já à página seguinte; outros lêem, desconfiados ou agradavelmente surpreendidos; todos, porém, sentiram o insólito da situação. Não é normal ter, num diário de referência e grande circulação, um texto com este tema.
A estranheza é, ela mesmo, estranha. Nos tempos que correm não somos propriamente cândidos. Por isso, nas outras páginas deste periódico, precisamente por ser de referência e grande circulação, encontram-se, sem despertar assombro, os assuntos mais diversos e abstrusos. Violências cruéis e perversões várias, passando por inúmeros crimes, tolices e extravagâncias, até temas religiosos, de agressões extremistas a ensinamentos sábios, não suscitam perturbação. Nada incomoda tanto uma audiência sofisticada e esclarecida quanto este título. Todas as coisas são de esperar numa publicação destas; não uma inquirição séria sobre a pessoa de Deus.
No entanto, a divindade é o tema mais presente e comum da humanidade. Nas publicações de referência e nas manifestações públicas de qualquer outro período ou região, surge a natural e serena presença da Providência. Todas as culturas, épocas e civilizações conviveram com ela de formas variadas, mas sempre normais. O incómodo actual contrasta com a generalidade dos povos. A aberração é realmente nossa. Insólito não é o título, mas a sua raridade.
A origem da inesperada estranheza é óbvia. Somos herdeiros da primeira tentativa humana de erradicação sistemática do transcendente. Nos últimos 250 anos, em toda Europa, filósofos argumentaram e oradores ridicularizaram; autoridades proibiram, encerraram, prenderam, por vezes devastaram e executaram. No conjunto, representou o maior esforço colectivo da história da humanidade. E foi contra Deus.
Finalmente os promotores entenderam que não só o processo os transformara em monstros piores do que os que diziam perseguir, mas os resultados eram desanimadores. A religião, debaixo da terrível pressão, resistiu e prosperou. Então mudaram o método. O Todo-Poderoso deixou de ser atacado abertamente para ser ignorado. Passou de inimigo a desconhecido.
Hoje suscita-se um esforço colectivo de fingir que as questões fundamentais da existência -origem e finalidade da realidade, sentido da vida, destino pessoal- afinal não interessam. A cultura mediática embriaga-se em ilusão, magia, política, ciência, zombies e super-heróis para esquecer que somos apenas humanos em busca da felicidade. As crenças mais abstrusas podem ser apregoadas livremente, desde que realmente não sejam levadas a sério. Como não se entende uma fé verdadeira, existem oficialmente apenas duas alternativas admissíveis: indiferença ou fanatismo. Chega-se a ponto de rejeitar como boçalidade ou fundamentalismo qualquer genuína expressão de devoção. Um texto como este, por exemplo, deve manifestar desequilíbrio.
O desvio afectou até os fiéis piedosos. Como algum público se irrita com a religião alheia, vários devotos escondem a sua fé para não incomodar. Sem se preocuparem com o incómodo de Deus. Muitos, até zelosos, têm dificuldade em se relacionar com o sublime, preferindo uma religião pragmática e assistencialista. O Papa Francisco censurou precisamente isso na sua primeira homilia: "Se não confessarmos Jesus Cristo, tornar-nos-emos uma ONG sociocaritativa, mas não a Igreja, Esposa do Senhor" (Capela Sistina, 14 de Março de 2013).
Qual é então o lugar de Deus? Alguns recusam-Lhe cidadania, fazendo-O o único proscrito da sociedade tolerante. Outros situam-nO no alto dos Céus, cheio de majestade mas vago, longínquo e indiferente. Há ainda os que O colocam dentro do coração do homem, mas tão fundo que mal se sente. Não entendem que a questão do lugar de Deus realmente não faz sentido. Deus, sendo Deus, não tem lugar, pois o infinito não sofre localização; o absoluto não é contingente. O único lugar a determinar é o nosso. E, onde quer que esse seja, "o Reino de Deus está próximo" (Mc 1, 15).

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