Mário Nogueira, o verdadeiro ministro da Educação

José Manuel Fernandes 17/9/2014, OBSERVADOR

Enquanto o nosso sistema educativo for tão centralizado e tão colonizado pelos sindicatos, enquanto os pais não puderem escolher a escola dos filhos, a abertura de cada ano escolar será sempre caótica
Segunda-feira, dia de início das aulas, a certa altura levantei a cabeça do computador e olhei para a parede onde estão as televisões. Que susto: Mário Nogueira em duplicado, em dois dos canais de notícias. Felizmente os aparelhos estavam sem som.
Depois interroguei-me: mas porque é que, num dia em que o foco deviam ser as expectativas de quem inicia, ou reinicia, as aulas, quem está por todo o lado é um sindicalista que há décadas não entra numa sala de aulas a não ser à frente de um piquete de greve? A resposta é simples: porque o nosso sistema educativo é, em muitos aspectos, mais fruto dos mários nogueiras deste país do que de muitos e sucessivos ministros da Educação. A forma como este ano lectivo voltou a abrir é uma boa ilustração deste paradoxo.
Perguntam-me porque é que, todos os anos, o arranque do ano escolar é sempre um drama. Porque é que faltam sempre professores. Porque é que tantas famílias só em cima da hora conhecem horários e regras. Porque é que há sempre protestos, manifestações, escolas fechadas a cadeado e por aí adiante. A resposta habitual remete para a incompetência do Ministério (uma incompetência historicamente comprovada, reconheça-se). Quem não gostar do ministro de turno, acrescentará que a culpa é dele. Quem preferir o discurso ortodoxo dos sindicalistas, acrescentará que é por se estar a desinvestir da "escola pública".
A verdade é outra: as dificuldades, maiores ou menores, que há todos os anos por altura da abertura do ano escolar são uma consequência directa do gigantismo paquidérmico do Ministério da Educação, do seu centralismo e da sua obsessão monopolista. É também uma consequência de o foco das suas políticas ser há muitos anos os professores, as suas carreiras e os seus direitos, e não os alunos e as suas famílias.
Basta olhar para o mastodonte. O Ministério da Educação não é só a maior "empresa" portuguesa, com mais de 150 mil funcionários e uma burocracia que vomita directivas sobre directivas. O ME é também uma empresa com milhares de locais de trabalho diferentes, com necessidades diferentes, mas que está capturado por interesses sindicais que o obrigam a tratar todos os funcionários e todos os candidatos a funcionários de forma uniforme e centralizada.
O nosso ministério é fruto de uma utopia estalinista – por muito estranho que possa parecer juntar utopia e estalinismo. A utopia é a de tratar todos os professores por igual, à ordem dos sindicatos. O estalinismo resulta da única forma de o conseguir: centralizando tudo. O sistema de colocação de professores leva estas políticas ao paroxismo.
Todos estarão recordados da crise das colocações em 2004. Nesse ano o sistema bloqueou e não havia forma de distribuir os professores pelas escolas. Mais uma vez, a culpa era da incompetência, talvez do computador. Poucos sabem com foi o problema resolvido: não cumprindo a lei. Eu explico. Nesse ano, após uma negociação entre a equipa de David Justino e os sindicatos, o sistema de colocação de professores passou a ser totalmente centralizado: todas vagas abriam ao mesmo tempo, todos os professores concorriam ao mesmo tempo, tanto os que queriam mudar de escola, como os que queriam apenas arranjar uma escola. Para cada lugar em aberto, era preciso ordenar os milhares de candidatos. Quando um professor da escola A conseguia lugar na escola B, abria um lugar na escola A que antes não estava a concurso. Era então necessário refazer todos os ordenamentos, vezes e vezes a fio. O computador não aguentou – nenhum aguentaria – pelo que fez-se um pequeno truque: para esses lugares não se recalculava tudo. Não era isso que dizia a lei, mas era isso que impunha a realidade. O problema lá se resolveu, desta forma algo kafkiana.
Dez anos depois voltamos a ter problemas com as colocações. Porquê? Porque o Ministério voltou a aceitar na negociação com os sindicatos a centralização de todas as colocações, agora para aquele grupo de escolas que pacientemente, lentamente, tinham vindo a conseguir alguma autonomia. É um absurdo: se as escolas têm autonomia, deviam poder escolher os seus professores de acordo com as suas necessidades e critérios. Mas é uma realidade: a lógica sindical é que exista um único patrão, a burocracia centralizada da 5 de Outubro, não as vontades descentralizadas das escolas, das suas equipas, das famílias cujas escolhas deviam respeitar.
A cereja em cima do bolo foi fazerem estas colocações seguindo uma fórmula que não respeita o que está escrito na lei, como demonstrámos aqui no Observador. Mas se esse comportamento mostra o nível de autismo do Ministério, não é nele que está o problema: o problema está em termos o sistema educativo mais centralizado, mais burocratizado e mais dependente das negociações com os sindicatos do Hemisfério Ocidental.
Num sistema educativo centrado nos alunos, as suas famílias pressionariam as escolas para ter os melhores professores e teriam a liberdade de escolher outra escola quando isso não acontecesse – escola pública ou mesmo escola privada. No nosso sistema a prioridade não é dar aos alunos o professor que melhor se adapta às suas necessidades, é dar aos professores a escola que está mais de acordo com as suas conveniências. E a perversidade de tudo isto reflecte-se no facto de acharmos que temos professores satisfeitos com os seus empregos é sinal de que temos boas escolas e boas aprendizagens, quando isso está longe de ser verdade. Ou é mesmo mentira.
Basta pensar em duas outras falácias sindicais adoptadas pelo discurso dominante: a de que com mais professores e com turmas mais pequenas teremos melhor educação. Ao analisar o mais recente relatório da OCDE Education At a Glance, a revista The Economist mostra como isso é falso. Mais: mostra como, apesar da evolução dos últimos anos, o sistema português continua a ser um modelo de ineficiência. Não é na remuneração dos professores ou na dimensão das turmas que reside o problema português: é em pensar-se que tudo se resolve a partir da 5 de Outubro, é em aceitar a chantagem sindical, é em não devolver a palavra às famílias, que deveriam poder "votar com os pés", trocando os seus filhos de escola livremente em função dos resultados obtidos.
Mais: uma das tragédias destes nossos tempos é vermos como um ministro que chegou a falar em "implodir a 5 de Outubro" acaba também ele prisioneiro desta máquina, desta lógica e, em última análise, prisioneiro de Mário Nogueira. Ele, e todos quantos vierem depois dele enquanto esta lógica não for alterada, vão continuar a ter insónias a cada abertura do ano lectivo, como meros CEOs de uma empresa tão gargantuesca como ingerível e ingovernável.

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