Privilégios

João César das Neves
DN 2014.09.29

Na quinta-feira, a cidade de Lisboa ficou mais uma vez bloqueada porque os trabalhadores do Metropolitano fizeram uma das suas inúmeras greves deste ano. Se essa enorme perturbação acontecesse por acidente ou atentado, seria considerada calamidade. Assim é aceite como forma de luta.
Isto acontece, antes de mais, porque pode acontecer. Em Portugal, a grande maioria das greves são em serviços públicos. O ministro da Saúde notou-o na quarta-feira: "Esta não é uma greve de enfermeiros, mas uma greve dos enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde." A razão tem que ver com o risco para quem as declara. Nos sectores privados, os trabalhadores sabem que uma paralisação prejudica a empresa e pode destruir-lhes o emprego. Por isso só a usam em caso extremo, como deve ser. As entidades próximas do Estado, como têm o emprego seguro, não precisam desses cuidados. Apesar de aí afectarem o interesse nacional.
Nesses sectores, aliás, a greve está desvirtuada. Ela foi concebida como um instrumento para penalizar o patrão, forçando-o a atender aos direitos dos trabalhadores. Mas as entidades públicas não são prejudicadas pela greve. As empresas de transporte até ganham, porque já receberam o dinheiro dos passes e poupam nos custos de operação. Quem sofre é o público, que nada tem que ver com a zanga. Aí, a paralisação equivale a sabotagem social para defender privilégios de quem abusa de uma posição de poder. A greve no Metropolitano foi bem explícita, pois a motivação era o repúdio da possível subconcessão da empresa a privados. Os trabalhadores não querem perder o aconchego que o acesso aos impostos lhes dá. Impostos pagos pelos que na quinta-feira andaram a pé.
Havia outra razão para a greve: a "degradação das condições de trabalho". Alguém devia informar os trabalhadores do metro que há uma grande crise em todo o País. Imensa gente perdeu emprego, cortou despesas essenciais, emigrou e passa por terríveis necessidades. Isto acontece há uns anos; é estranho não terem notado. Além disso, uma das principais razões dessa crise é o descontrolo das contas públicas, nas quais o défice e a dívida do Metropolitano figuram em destaque. Que nestas condições esses funcionários sofram alguma degradação das condições de trabalho seria uma modesta, e claramente insuficiente, participação no esforço que toda a sociedade tem feito para apertar o cinto e pagar a dívida nacional. O simples facto de declararem que têm condições de trabalho, à nossa custa, que gostariam de defender já os coloca numa vantagem face a muitos milhares dos que tiveram de andar a pé na quinta--feira, para que os trabalhadores do Metropolitano possam defender aquilo que eles nunca conseguiram ter.
O fenómeno é simbólico das atitudes desde que se declarou o tsunami da crise, nos finais de 2008. Largos sectores da economia sofreram em cheio o embate da enxurrada. Ricos e pobres, empresas velhas e novas, prósperas e endividadas tiveram de ajustar a vida, cortar custos, adaptar hábitos, emigrar, subir poupanças, mudar de sector. Com grande sofrimento, a reestruturação fez-se e o país, ainda a lutar com novas ondas e réplicas, está lentamente a sair da lama. Entretanto, alguns grupos, protegidos das vagas em cima do muro, passaram o tempo a protestar com os salpicos que os atingiam, bramando por culpados, invocando a Constituição, exigindo direitos adquiridos. Esses são realmente privilegiados, mas querem passar por vítimas.
Nos últimos anos, o País foi obrigado a um dos ajustamentos mais violentos da sua história, que ainda está longe do fim. Mas teve de o realizar sob o concerto das reclamações de grupos favorecidos, que eram também os que menos contribuíam para a restruturação, e em geral até a sabotavam. Por isso o processo já leva seis anos e ainda não tem o sucesso garantido, dado largos extractos da população se acharem com direito a manter o trem de vida, evidentemente insustentável, que nos trouxe à crise. Precisamente aqueles a quem a sociedade confiou as infraestruturas, que deviam por isso ter mais sentido comunitário.

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