Vida de cliente
Carla Hilário Quevedo
Ionline 2013-08-24
O que aconteceu à persuasão? Para onde foi a habilidade de convencer uma pessoa dos extraordinários benefícios de adquirir um produto sem o qual sempre viveu?
O artigo de Paulo Moura, no "Público" de 11 de Agosto, sobre a situação de exploração no call center da PT de Coimbra, indignou menos gente do que o já célebre "brincar aos pobrezinhos" ou do que a entrevista de Judite de Sousa a um rapaz igualzinho a tantos outros, com as mesmas dificuldades de vocabulário e sintaxe, estando a diferença apenas na conta bancária. Aproveito para apontar que, nos casos de indignação furibunda na internet, as mulheres foram atacadas com um enorme à-vontade, sem pudor nem contenção na linguagem usada, e os homens mais ou menos poupados ou elogiados. Seria talvez interessante entrevistar de novo Lorenzo Carvalho, o único rico no país que é idolatrado pelo povo, mas desta vez com um homem a conduzir a entrevista. Depois medíamos o tom dos comentários. Não é boa ideia? Prometo tirar conclusões politicamente incorrectas dos resultados que desde já prevejo.
Mas agora falemos do que interessa. Há uma parte do artigo de Paulo Moura que mereceu a minha atenção enquanto cliente em geral e não da MEO em particular, que não sou. Um dos operadores do call center referiu que tem de seguir regras específicas ditadas pela empresa que o proíbem de dar todas as informações ao cliente acerca do produto que está a comprar por telefone. Se o cliente perguntar, o operador responde com a verdade, mas se não tiver a destreza de fazer a pergunta certa no telefonema, é enganado com a maior das facilidades. O resultado é muitas vezes uma reclamação da parte do cliente por não ter sido informado de pormenores sobre o produto, que afinal custou mais dinheiro do que o anunciado. O operador é então repreendido ou despedido, imagino que não por ter enganado o cliente, mas por ter sido apanhado.
Quase todos os dias recebo chamadas de empresas que me querem vender coisas, de seguros a assinaturas de revistas. Quando não telefonam, enviam SMS ou emails. Passo tempo do meu dia a enviar propostas mirabolantes para o spam e a apagar mensagens escritas. Passo também algum tempo a dizer que "não estou interessada" ao telefone. Cheguei a este ponto de assertividade na recusa por cansaço de ser perseguida. De início, tentava entender a pressão para vender porque as dificuldades eram muitas, mas conseguiram estafar a minha alma compreensiva com insistências, que se foram tornando cada vez mais agressivas e até ameaçadoras. Não faço ideia dos resultados desta abordagem selvagem a clientes e potenciais consumidores, mas se todos forem tão indiferentes como me tornei, haverá mais falências do que as anunciadas.
O que aconteceu à persuasão? Para onde foi a habilidade de convencer uma pessoa dos extraordinários benefícios de adquirir um produto sem o qual sempre viveu? "Vender" não é sinónimo de "enganar", até porque os custos do engano são, na maior parte dos casos, irrecuperáveis. Os resultados são tão graves quanto a quebra de confiança entre o cliente e a empresa e a mudança para a concorrência, que não pode não estar a fazer melhor. Mas se a ideia for alienar os clientes, estão no caminho certo.
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