O monopólio da bondade
Que a Internet, as caixas dos comentários e as redes sociais são terreno fértil para que a estupidez humana cresça firme e viçosa, já todos nós sabemos há muito tempo. E por isso, o que há de novo nas reacções à morte de António Borges não são, de todo, os textos anónimos e mal-educados que celebram a morte de um ser humano. A isso já estamos habituados. O que há de novo são os textos assinados e bem-educados de pessoas como Pedro Tadeu e Baptista-Bastos (ambos no DN), que sentiram necessidade de assinalar a morte de António Borges com uma denúncia das suas posições ideológicas, em vez da costumeira suspensão das hostilidades por altura da morte de uma figura pública.
Algum estudante de Sociologia ou de Ciência Política deveria comparar as reacções à morte de Miguel Portas com as reacções à morte de António Borges. Suponho que teria ali material para uma tese de doutoramento. É que essa diferença de reacções e de olhares diz muito sobre a cultura política portuguesa e o seu eterno défice democrático, apesar de o 25 de Abril já ter ocorrido há quase 40 anos. Enquanto um homem de direita olha para um homem de esquerda como um adversário político, demasiados homens de esquerda olham para demasiados homens de direita como inimigos a abater. A direita relaciona-se com a esquerda num plano político. A esquerda relaciona-se com a direita num plano moral.
E por isso, suponho que não passaria pela cabeça de muita gente de direita considerar Miguel Portas, por altura da sua morte, um homem com uma "visão do mundo detestável" (palavras de Pedro Tadeu sobre António Borges) ou que "compaixão" e "bondade" estavam ausentes do seu vocabulário (palavras de Baptista-Bastos). Qualquer pessoa de direita, como eu, estaria tão distante das opiniões políticas de Miguel Portas quanto Pedro Tadeu ou Baptista-Bastos se sentiam distantes de António Borges - mas em momento algum eu me lembraria de classificar Miguel Portas, e muito menos na hora da sua morte, como um homem insensível e indiferente ao sofrimento dos portugueses.
E a questão, senhores, é que enquanto isto não for resolvido na cabeça de certa esquerda, o nosso debate político nunca sairá da sofisticação de um jardim-de-infância, permanecendo a identificação medieval do errado (no plano político) com o mau (no plano moral). Se tu és bom e eu sou mau, nós somos inimigos, e não adversários. Enquanto a esquerda Tadeu e Baptista-Bastos não compreender que quando uma pessoa como António Borges - ou como eu, já agora - defende ideias liberais é porque genuinamente acredita que isso é o melhor para o país e para o povo português, nós nunca conseguiremos ter um debate adulto sobre como chegámos aqui e como sair deste buraco.
Enquanto não for possível discordar sem demonizar, enquanto não for possível à esquerda admitir que ela não detém o monopólio da bondade, enquanto não for possível à esquerda dizer a um adversário político "eu discordo profundamente de ti" sem acrescentar logo de seguida "és um pau-mandado ao serviço do grande capital e queres é proteger os ricos à custa dos pobres"; enquanto nada disto for possível, nós seremos sempre um país politicamente diminuído e sem uma verdadeira cultura democrática. Que a morte de António Borges sirva, ao menos, para nos ajudar a todos a compreender que só é possível discutir política num plano de igualdade moral. A grande dúvida é: será que a esquerda deixa?
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