Legalmente ingovernável

João Miguel Tavares Público, 01/08/2013

Trinta cidadãos, liderados pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, entre os quais se encontram o ex-ministro da Saúde Correia de Campos e o actual bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, interpuseram no início do ano uma providência cautelar contra o encerramento da Maternidade Alfredo da Costa (MAC). Sete meses depois, a juíza Anabela Araújo, do Tribunal Administrativo de Lisboa, deu-lhe provimento e decretou a "reposição imediata de funcionamento de todos os serviços da MAC", proibindo o Ministério da Saúde de praticar "quaisquer actos e/ou operações" que conduzam ao encerramento da maternidade.
Os cortes a que o governo tem sido obrigado têm causado um verdadeiro enxame de providências cautelares, com o poder judicial a ser todos os dias convocado para averiguar da legalidade de decisões políticas. Embora isto seja uma aplicação prática do sistema de pesos e contrapesos próprio de uma democracia - e por isso matéria para lidar com pinças -, parece-me, apesar de tudo, que nos estamos a deixar enredar numa confusão entre competências judiciais e executivas. E essa é, obviamente, uma confusão pouco saudável e perigosa.
Ainda há pouco tempo, o Supremo Tribunal Administrativo deixou claro que a lei das freguesias "não é um acto administrativo contenciosamente impugnável", por se tratar de uma matéria reservada ao poder legislativo, deitando por terra as pretensões de dezenas de freguesias portuguesas que se preparavam para protestar por terem ficado sem a sua junta. Ora, é este tipo de clarificação sobre o que é exactamente um acto administrativo impugnável (e por isso contestável judicialmente) e aquilo que são decisões que competem à esfera exclusiva do governo, que faz muita falta nesta altura do campeonato. Eu não sou jurista, é certo. Mas sou cidadão - e enquanto cidadão, tenho as maiores dificuldades em compreender que uma juíza reconheça a si própria legitimidade para se intrometer na decisão política de transferir o nascimento de bebés da zona de Picoas para a zona da Estefânia.
Embora tenha quatro filhos, os meus conhecimentos de obstetrícia são limitados, e não tenho grande opinião sobre o fecho da MAC. Mas não é isso que está aqui em causa. O que está em causa é isto: se o poder judicial começa a dar palpites sobre cada acto do poder executivo, o país pode ficar virtualmente ingovernável. Escreve a juíza Anabela Araújo, ao melhor estilo de Arménio Carlos: "Nem a troika pode justificar afronta injustificada, desnecessária e ilegal da saúde pública, na ilegalidade não há poupança!" Mais: "O encerramento da MAC (...) deve-se a questões de índole económico-financeira (...) que constituem realidades fáticas desprovidas de força bastante para derrogar a primazia da defesa do interesse difuso "saúde pública" traduzido na manutenção da MAC."
Louve-se a coerência da juíza: esta é uma linha de argumentação que vai da primeira instância até ao Tribunal Constitucional, defendendo-se que os direitos fundamentais se sobrepõem invariavelmente a quaisquer "questões de índole económico-financeira". Ora, há aqui um duplo problema. Não só a frase anterior é altamente discutível, como se os tribunais desatam a considerar tudo fundamental, desde o Orçamento de Estado até ao encerramento da MAC, então, de facto, mais vale convidar Anabela Araújo para substituir Paulo Macedo. E, de caminho, deixar as chaves do Parlamento à guarda do Palácio Ratton.

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